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O meu pai, encarcerado no seu corpo, mas flutuando livremente

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    Conheço um homem que, todas as noites,
    paira sobre a cidade.
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    Nos seus sonhos, ele gira e rodopia
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    com os dedos dos pés a beijar a Terra.
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    "Tudo tem movimento", diz ele,
  • 0:15 - 0:19
    mesmo um corpo
    tão paralisado quanto o dele.
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    Esse homem é o meu pai.
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    Há três anos, quando descobri
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    que o meu pai tinha sofrido
    um grave derrame
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    no tronco cerebral,
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    entrei no quarto dele na UCI,
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    no Instituto Neurológico de Montreal,
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    e encontrei-o deitado
    morbidamente paralisado,
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    preso a um respirador.
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    A paralisia tinha-lhe parado
    o corpo lentamente:
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    primeiro os dedos dos pés,
    depois as pernas,
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    o tronco, os dedos das mãos e os braços.
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    A paralisia chegou ao pescoço,
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    fazendo-o perder a capacidade de respirar,
  • 0:57 - 1:01
    e parou mesmo por baixo dos olhos.
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    Ele nunca perdeu a consciência.
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    Na verdade, ele assistia imóvel,
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    enquanto o seu corpo ia paralisando,
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    membro após membro,
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    músculo após músculo.
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    Naquele quarto de UCI,
    aproximei-me do corpo do meu pai
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    e, com a voz trémula e por entre lágrimas,
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    comecei a recitar o alfabeto:
  • 1:26 - 1:31
    A, B, C, D, E, F,
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    G, H, I, J, K...
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    Na letra K, ele piscou os olhos.
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    Eu recomecei:
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    A, B, C, D, E,
  • 1:44 - 1:47
    F, G, H, I...
  • 1:47 - 1:50
    Ele piscou novamente na letra I,
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    depois na T, depois na R, e então na A:
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    "Kitra".
  • 1:56 - 2:00
    Ele disse:
    "Kitra, minha linda, não chores.
  • 2:00 - 2:03
    "Isto é uma bênção".
  • 2:04 - 2:06
    A sua voz não era audível,
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    mas o meu pai disse o meu nome
    com toda a força.
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    Apenas 72 horas após o derrame,
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    ele já havia aceitado
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    totalmente a sua condição.
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    Apesar do seu estado físico crítico,
  • 2:21 - 2:24
    ele estava totalmente presente comigo,
  • 2:24 - 2:26
    orientando, cuidando,
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    e sendo o meu pai da mesma forma,
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    talvez até mais do que antes.
  • 2:32 - 2:34
    A síndrome do encarceramento
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    é o pior pesadelo de muitas pessoas.
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    Em francês, às vezes, chamam-lhe
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    "maladie de l'emmuré vivant",
  • 2:41 - 2:45
    o que significa, literalmente,
    "doença do emparedado vivo".
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    Para muitos, talvez para a maioria,
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    a paralisia é um horror indescritível.
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    Mas a experiência do meu pai,
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    perdendo todas as funções do seu corpo,
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    não era uma experiência
    de se sentir preso,
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    mas de voltar a sua psique
    para dentro de si,
  • 3:04 - 3:07
    diminuindo o ruído exterior,
  • 3:07 - 3:10
    encarando o âmago da sua própria mente
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    e, nesse lugar,
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    apaixonando-se por uma nova vida
    e por um novo corpo.
  • 3:17 - 3:19
    Enquanto rabino e homem religioso,
  • 3:19 - 3:23
    oscilando entre a mente e o corpo,
    entre a vida e a morte,
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    a paralisia trouxe-lhe
    uma nova consciência.
  • 3:28 - 3:30
    Ele percebeu que já não precisava
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    de olhar para além do mundo corpóreo
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    para encontrar o divino.
  • 3:36 - 3:41
    "O paraíso está neste corpo,
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    "está neste mundo", disse ele.
  • 3:44 - 3:48
    Dormi ao lado do meu pai
    nos primeiros quatro meses,
  • 3:48 - 3:50
    atenta o mais que podia
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    a cada desconforto dele,
  • 3:53 - 3:56
    compreendendo o profundo
    medo psicológico humano
  • 3:56 - 4:00
    de não conseguir pedir ajuda.
  • 4:00 - 4:04
    A minha mãe, irmãs, irmão e eu
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    envolvemo-lo num casulo de cura.
  • 4:08 - 4:10
    Tornámo-nos nos seus porta-vozes,
  • 4:10 - 4:14
    passando horas a recitar o alfabeto,
    todos os dias,
  • 4:14 - 4:16
    enquanto ele sussurrava sermões
  • 4:16 - 4:19
    e poesia com o piscar de seus olhos.
  • 4:20 - 4:24
    O quarto dele tornou-se
    o nosso templo de cura.
  • 4:25 - 4:27
    A cabeceira da sua cama
    tornou-se num lugar
  • 4:27 - 4:32
    para os que procuravam aconselhamento
    espiritual e, através de nós,
  • 4:32 - 4:35
    o meu pai conseguia falar
  • 4:35 - 4:37
    e ajudar,
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    letra a letra,
  • 4:39 - 4:41
    piscadela a piscadela.
  • 4:41 - 4:45
    No nosso mundo tudo passou a ser
    lento e suave,
  • 4:45 - 4:49
    enquanto o barulho, o drama e a morte
    na enfermaria do hospital
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    desapareciam ao fundo.
  • 4:52 - 4:54
    Quero ler-vos uma das primeiras coisas
  • 4:54 - 4:57
    que transcrevemos
    na semana após o derrame.
  • 4:59 - 5:01
    Ele redigiu uma carta
  • 5:01 - 5:03
    para os membros de sua sinagoga,
  • 5:03 - 5:06
    terminando-a da seguinte forma:
  • 5:07 - 5:09
    "Quando a minha nuca explodiu,
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    "eu entrei noutra dimensão:
  • 5:12 - 5:16
    "embrionária, subplanetária, protozoária.
  • 5:17 - 5:21
    "Os universos abrem-se e fecham-se
    continuamente.
  • 5:21 - 5:24
    "Muita gente, quando está mal,
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    "deixa de crescer.
  • 5:26 - 5:28
    "Na semana passada, fiquei muito mal,
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    "mas senti a mão do meu Pai a proteger-me
  • 5:31 - 5:34
    "e o meu Pai fez-me regressar".
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    Quando não éramos a voz dele,
  • 5:37 - 5:40
    éramos as suas pernas e os seus braços.
  • 5:40 - 5:43
    Eu movia-os como sabia que iria querer
  • 5:43 - 5:45
    que movessem os meus braços e pernas,
  • 5:45 - 5:49
    caso estivessem imóveis o dia inteiro.
  • 5:49 - 5:53
    Lembro-me que segurava
    os dedos dele perto do meu rosto,
  • 5:53 - 5:58
    dobrando cada articulação,
    para mantê-las flexíveis.
  • 5:58 - 6:00
    Eu pedia-lhe várias vezes
  • 6:00 - 6:02
    que visualizasse o movimento,
  • 6:02 - 6:07
    para que visse, por dentro,
    os dedos a dobrarem-se e a estenderem-se,
  • 6:07 - 6:11
    e que acompanhasse o movimento
    na sua mente.
  • 6:13 - 6:15
    Um dia, pelo canto do olho,
  • 6:15 - 6:18
    vi o corpo dele contorcer-se
    como o de uma cobra,
  • 6:18 - 6:23
    num espasmo involuntário
    que lhe atravessava os membros.
  • 6:24 - 6:26
    Naquele momento, achei que estava
    com alucinações,
  • 6:26 - 6:30
    depois de passar tanto tempo
    a cuidar do corpo dele,
  • 6:30 - 6:34
    desesperada para ver
    qualquer coisa a mexer-se sozinha.
  • 6:34 - 6:37
    Mas ele disse-me
    que tinha sentido formigueiros,
  • 6:37 - 6:43
    faíscas elétricas,
    logo abaixo da superfície da pele.
  • 6:44 - 6:47
    Na semana seguinte, ele começou
  • 6:47 - 6:50
    a mostrar uma leve força muscular.
  • 6:51 - 6:53
    Estavam a formar-se ligações.
  • 6:53 - 6:58
    O corpo estava a despertar lentamente,
  • 6:58 - 7:02
    membro após membro, músculo após músculo,
  • 7:02 - 7:04
    contração a contração.
  • 7:05 - 7:08
    Como fotógrafa documental,
  • 7:08 - 7:09
    senti a necessidade de fotografar
  • 7:09 - 7:12
    cada um dos seus primeiros movimentos,
  • 7:12 - 7:14
    como uma mãe com o seu recém-nascido.
  • 7:14 - 7:19
    Eu fotografei-o a dar
    o seu primeiro suspiro sem aparelhos,
  • 7:19 - 7:21
    o momento de celebração
  • 7:21 - 7:25
    quando ele mostrou força muscular
    pela primeira vez,
  • 7:25 - 7:28
    as novas tecnologias adaptadas
    que lhe permitiram
  • 7:28 - 7:31
    ganhar cada vez mais independência.
  • 7:32 - 7:34
    Fotografei o cuidado e o amor
  • 7:34 - 7:36
    que o cercavam.
  • 7:45 - 7:49
    Mas as minhas fotos contavam
    apenas a história exterior
  • 7:49 - 7:52
    de um homem deitado
    numa cama de hospital,
  • 7:52 - 7:54
    ligado a um respirador.
  • 7:54 - 7:57
    Eu não tinha como retratar
    a sua história interior.
  • 7:57 - 8:01
    Então, comecei a procurar
    uma nova linguagem visual
  • 8:01 - 8:04
    que lutasse para expressar
    a qualidade efémera
  • 8:04 - 8:07
    da sua experiência espiritual.
  • 8:26 - 8:29
    Por fim, quero partilhar convosco
  • 8:29 - 8:32
    um vídeo duma série
    em que tenho trabalhado,
  • 8:32 - 8:35
    que tenta mostrar a existência
    lenta e interior
  • 8:35 - 8:38
    que o meu pai tem vivido.
  • 8:38 - 8:42
    À medida que ele foi recuperando
    a sua capacidade de respirar,
  • 8:42 - 8:44
    comecei a gravar os seus pensamentos.
  • 8:44 - 8:46
    A voz que vocês ouvem nesse vídeo
  • 8:46 - 8:48
    é a voz dele.
  • 8:48 - 8:52
    (Vídeo) Ronnie Cahana:
    É preciso pensar
  • 8:52 - 8:54
    que se está paralisado
  • 8:54 - 9:00
    para se saber o que é ser tetraplégico.
  • 9:02 - 9:04
    Eu não.
  • 9:04 - 9:07
    Na minha mente
  • 9:07 - 9:10
    e nos meus sonhos,
  • 9:10 - 9:12
    todas as noites
  • 9:12 - 9:20
    flutuo pela cidade, como Chagall,
  • 9:21 - 9:24
    girando e rodopiando,
  • 9:24 - 9:30
    com os dedos a beijar o chão.
  • 9:31 - 9:36
    Não sei nada
  • 9:36 - 9:39
    do que dizem ser
  • 9:39 - 9:44
    um homem que fica sem movimento.
  • 9:45 - 9:48
    Tudo tem movimento.
  • 9:48 - 9:51
    O coração bate.
  • 9:51 - 9:54
    O corpo agita-se.
  • 9:56 - 9:59
    A boca move-se.
  • 10:00 - 10:03
    Nunca ficamos parados.
  • 10:04 - 10:10
    A vida triunfa, para cima e para baixo.
  • 10:11 - 10:13
    Kitra Cahana: Para muitos de nós,
  • 10:13 - 10:16
    os nossos músculos começam
    a contrair-se e a mover-se
  • 10:16 - 10:19
    muito antes de termos consciência,
  • 10:19 - 10:21
    mas o meu pai diz-me que o seu privilégio
  • 10:21 - 10:24
    é viver na periferia distante
  • 10:24 - 10:27
    da experiência humana.
  • 10:27 - 10:30
    Como um astronauta que vê uma perspetiva
  • 10:30 - 10:32
    que pouquíssimos de nós um dia verão,
  • 10:32 - 10:35
    ele fica a pensar e observa,
  • 10:35 - 10:38
    — enquanto respira pela primeira vez —
  • 10:38 - 10:41
    e sonha em voltar para casa.
  • 10:41 - 10:45
    "A vida começa aos 57 anos", diz ele.
  • 10:45 - 10:49
    Uma criança não tem atitude no seu ser,
  • 10:49 - 10:53
    mas um homem insiste
    no seu mundo todos os dias.
  • 10:55 - 10:58
    Poucos terão que enfrentar
    um dia, limitações físicas
  • 10:58 - 11:01
    tão graves quanto as do meu pai,
  • 11:01 - 11:04
    mas todos teremos momentos de paralisia
  • 11:04 - 11:06
    nas nossas vidas.
  • 11:07 - 11:10
    Sei que frequentemente enfrento muralhas
  • 11:10 - 11:13
    que parecem completamente insuperáveis,
  • 11:13 - 11:15
    mas o meu pai insiste
  • 11:15 - 11:18
    em que não existem becos sem saída.
  • 11:18 - 11:24
    Em vez disso, ele convida-me
    para o seu espaço de cura mútua,
  • 11:24 - 11:26
    para que eu dê o meu melhor
  • 11:26 - 11:29
    e ele me dê o seu melhor.
  • 11:30 - 11:34
    Para ele, a paralisia foi uma porta aberta.
  • 11:34 - 11:36
    Foi uma oportunidade de emergir,
  • 11:36 - 11:38
    de reacender a força da vida,
  • 11:38 - 11:40
    de ficar por muito tempo consigo mesmo,
  • 11:40 - 11:44
    para se apaixonar por toda
    a continuidade da criação.
  • 11:46 - 11:50
    Hoje, o meu pai já não está encarcerado.
  • 11:50 - 11:53
    Movimenta o pescoço com facilidade,
  • 11:53 - 11:56
    retiraram-lhe o cateter de alimentação,
  • 11:56 - 11:58
    respira sozinho,
  • 11:58 - 12:02
    fala lentamente
    com a sua própria voz calma
  • 12:02 - 12:04
    e trabalha todos os dias
  • 12:04 - 12:08
    para que o seu corpo paralisado
    ganhe mais movimento.
  • 12:09 - 12:12
    Mas essa tarefa nunca vai terminar.
  • 12:12 - 12:14
    Como ele diz:
  • 12:14 - 12:16
    "Eu vivo num mundo decadente,
  • 12:16 - 12:19
    "e tenho uma obra sagrada a realizar".
  • 12:19 - 12:21
    Obrigada.
  • 12:21 - 12:24
    (Aplausos)
Title:
O meu pai, encarcerado no seu corpo, mas flutuando livremente
Speaker:
Kitra Cahana
Description:

Em 2011, Ronnie Cahana sofreu um grave derrame que o deixou com a síndrome de encarceramento: completamente paralisado, à exceção dos olhos. Embora isso pudesse destruir o estado mental duma pessoa normal, Cahana encontrou a paz ao "reduzir o ruído exterior" e "apaixonou-se de novo pela vida e pelo corpo". Numa palestra sóbria e emotiva, a filha dele, Kitra, mostra como documentou a experiência espiritual do pai, enquanto ele ajudava outras pessoas, mesmo no seu estado de aparente impotência.

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Video Language:
English
Team:
closed TED
Project:
TEDTalks
Duration:
12:38

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