Companheiros de viagem
Desde o momento em que
nascemos, e até antes,
estamos acompanhados.
Somos acompanhados pela família
e, normalmente, por profissionais
de saúde.
Começa o apego, tão necessário
para sobreviver
e também o desapego, dando
lugar a uma dança
na qual ambos estarão
mais ou menos presentes
ao longo da nossa vida.
Nascemos muito vulneráveis,
dependentes do mundo que nos rodeia
e assim começa a nossa viagem...
aprendendo com outros e de outros,
recolhendo a história e
construindo a própria.
O princípio e o final da vida
são situações de emoções intensas
e de muita fragilidade física.
Ambas as experiências são
de grande transcendência
para as pessoas que as partilham.
A nossa sociedade mudou,
vivemos mais anos e o período
final alonga-se.
Estamos numa sociedade envelhecida,
e com modelos, formas
e estilos de vida tais
que cada vez haverá mais pessoas
que se encontrarão sós
no final da vida.
Desde meados do século passado,
profissionais da saúde como
Elisabeth Kübler-Ross
e Cicely Saunders,
tomaram consciência de
que, nos hospitais,
os doentes terminais tinham necessidades
que não eram atendidas.
Os profissionais não
se ocupavam deles,
considerando que já
não os podiam curar.
Ao interessarem-se pelos
desesperançados,
verificaram que podiam melhorar
radicalmente a sua situação,
tanto no tratamento da dor
como na atenção às suas necessidades
afetivas e espirituais.
Desde então, acumulou-se
muito conhecimento
no campo profissional dos
cuidados paliativos.
Neste documentário, tentaremos
transmitir esta informação
assim como experiências e testemunhos
de pessoas que já passaram por isso,
de modo a que possam ser úteis
para acompanhar e cuidar.
Este documentário dirige-se
sobretudo ao acompanhante.
Quando a cura é improvável,
as prioridades mudam.
O afetivo e o espiritual convertem-se
no mais importante.
E apesar da certeza de que
o tempo de vida se reduz,
também é possível alargá-lo.
É possível viver uma vida
inteira em poucas semanas.
Os doentes costumam reconsiderar
o fundamental da sua existência.
Procuram reconciliar-se
e despedir-se.
Precisam de estabelecer o legado
que deixam aos outros
e ponderar, de acordo
com as suas convicções,
sobre o sentido da vida
e a transcendência.
O acompanhante também enfrenta
os temas mais importantes
da sua existência
e terá a oportunidade de finalizar
da melhor maneira a sua relação
com a pessoa doente.
Eu levei a minha mãe às urgências.
Um trinta de novembro, pensando
que teria uma infeção grave,
e que, depois de a estabilizarem,
a mandariam para casa.
O pior nem sequer é dizerem-nos
que a nossa mãe tem cancro.
Para mim, o pior foi terem-me
dito que tinha cancro e
que não se podia fazer nada,
absolutamente nada por ela.
Nada mais para além
de esperar a morte.
Até saber o diagnóstico
há um período de incerteza
de uns dias, algum tempo,
que é muito difícil de
suportar, realmente.
Todos os dias me levantava
e pensava:
será hoje? Será amanhã?
Era como se essa incerteza me
estivesse a comer por dentro.
Pois, o que hei de dizer? Senti
o corpo todo a tremer, percebes?
mas pronto, pronto. Isto é meu.
Eu tenho-o e acabou-se.
Quando a desordem inicial,
devida ao impacto da notícia,
se começa a superar,
é altura de nos organizarmos
e tomarmos decisões.
Toda a família fica afetada porque
é necessário cuidar do doente
e substituí-lo nas funções
que tinha anteriormente.
Na família, se se mexe uma parte,
todo o conjunto se mexe em
uníssono para o compensar.
Onde queria estar,
como queria estar...
nós falávamos com ele
e com essa informação,
juntávamo-nos, os quatro irmãos,
e víamos o que fazer.
Por causa da nova situação, é preciso
fazer algumas mudanças.
Por exemplo, uma pessoa que não
tratava das coisas da casa,
tem de começar a ocupar-se
se houver filhos,
os filhos também têm de reestruturar
um pouco a sua vida.
É importante que o doente
partilhe toda a informação
e possa tomar as suas
próprias decisões.
E, claro, eu sabia que
o impacto de dizer
"tu tens cancro" ia
ser muito grande.
A minha preocupação era: quem lhe
vai dizer, como o vai fazer?
Dizemos-lhe a verdade, não dizemos?
Acabamos por nos conformar,
um pouco contrariados,
mas depois vimos que foi o melhor.
Além do mais, ele assim teria
gostado e assim foi.
Ele quis saber a verdade
em todos os momentos.
Atrevo-me a dizer que, as
decisões que fomos tomando,
se não cem por cento dos casos,
noventa e oito por cento,
foram tomadas pelo meu pai.
E eu julgo que cada vez
mais se vai incluindo
os doentes e os cuidadores,
para poderem participar nas decisões
de recusa de tratamento,
e preferir abordagens paliativas a
partir de outras fases da doença.
E foi então que ele disse, olha
eu não quero mais quimio,
se me puderem dar radio, sim.
Mas eu, que pela segunda vez, vejo
que a quimio não me faz nada,
não quero saber mais
nada da quimio.
Então, foi quando a oncologista disse,
deixo a decisão nas suas mãos.
Através do testamento vital
é possível registar decisões
relativas a um momento futuro
no qual não as possa expressar.
As instruções prévias, é o que
a pessoa quer que se faça
quando não possa decidir
por ela própria.
Eu definiria de uma
maneira simples,
que o testamento vital não é mais
do que prolongar a autonomia
e a capacidade de
decidir do doente,
quando está num momento no
qual já não pode decidir.
O testamento vital não se destina a
quando uma pessoa se pode expressar.
Mesmo que uma pessoa tenha
feito um testamento vital,
prevalecerá o que disser
naquele momento.
Uma das decisões que é
preciso tomar é sobre
se vai viver a última etapa
no hospital ou em casa.
Evidentemente, uma coisa que
nos satisfez muitíssimo,
à família mais próxima,
foi respeitar que, ele sempre
nos disse o que queria,
que queria morrer em casa.
E cumpriu-se o seu desejo.
Também podemos pensar: claro,
isso não é assim tão fácil
Se não se consegue controlar essa
doença e é necessário interná-lo,
mas chega um momento em que
já não podemos fazer nada,
porque é que há de
morrer num hospital?
Depois veio outra fase,
que começou no verão,
quando a oncologista lhe disse
que já não podia fazer mais,
Disse-lhe que já não lhe
podia dar mais medicação,
porque a doença se tinha agravado
e tinha de passar a outros
médicos de paliativos,
que o iam acompanhar
no processo seguinte.
Foi quando a médica
responsável decidiu,
que o melhor, visto que já
não haveria mais tratamento,
eram os cuidados paliativos.
Os cuidados paliativos destinam-se
especificamente
a aliviar o sofrimento, a melhorar
a qualidade de vida, dar conforto
aos pacientes e às suas famílias,
amigos próximos que cuidam deles,
com doenças crónicas
muito avançadas,
ou em fase, como nós
dizemos, terminal.
Não existe um momento determinado,
é quando se vê claramente que as possibilidades
de tratamento curativo
se vão perdendo.
Em princípio, são os
profissionais de saúde
que solicitam a intervenção de uma
equipa de cuidados paliativos.
Mas isto não impede que
em certas ocasiões,
em que o profissional não peça
estes serviços, que a família,
tendo conhecimento deles, possa
entrar em contacto connosco.
No nosso caso, é uma equipa
de atendimento domiciliário.
O nosso trabalho é ver
e atender os pacientes,
sobretudo nas suas casas.
Em relação aos cuidados, as
necessidades da família são:
em primeiro lugar, saber
que o podem fazer.
Podem fazer-se muitas coisas, e
cuidar engloba tudo o que se faz,
que é dar ferramentas à família,
dar ferramentas ao paciente,
para que sintam
que existe um propósito
para estarem ali.
E que o mais básico, como aquecer
o creme no micro-ondas
numa taça, para que não sinta
o frio quando lho pões,
isso é cuidar.
Ensinar a família a preparar
algumas refeições,
o não obrigar o paciente a comer,
isso é cuidar.
É dizer-lhes: estão a fazer
as coisas muito bem,
isso é cuidar.
A educação sanitária nos
seus aspetos mais básicos,
como a higiene, os tratamentos,
saber como movê-los na cama.
Nós ensinamos-lhes uma
parte muito básica
e, normalmente, eles ensinam-nos
muito mais coisas,
porque quem conhece verdadeiramente
o paciente é a família,
e por vezes encontram soluções
tão interessantes
que apetece dizer "vamos
registar a patente disto".
Ou seja, julgo que o que mais precisam
é de segurança no que podem fazer.
Saber o que devo fazer
se tem febre,
se existe algum sítio onde
o levar, a quem devo ligar.
Toda essa informação que me deram,
deu-me muita segurança.
Na ajuda ao controlo da dor,
os familiares têm dois papéis.
Por um lado, o meramente técnico
de ministrar os analgésicos,
as doses e com as regras
ditadas pelos profissionais
que o atendem,
e normalmente as pessoas
fazem-no bem.
Mas também há outras medidas
não farmacológicas
que ajudam os pacientes a
ter um bom controlo da dor.
Por exemplo, para que o paciente esteja
descansado, se sinta acompanhado,
possa comunicar com
os seus familiares...
A prática de cuidados paliativos
evoluiu muito
e ajuda os doentes a viver
a etapa final sem dor
e, ao mesmo tempo, com lucidez.
Quando existe um cancro, uma
qualquer doença terminal
não há justificação para que
o doente sofra com dores,
pois existem meios suficientes
para que o doente não sofra.
Pareceu-nos fundamental o contributo
dado pela questão dos paliativos,
o contributo nesse momento,
tal como ele estava,
porque ele começava a enfrentar
a hipótese de morrer asfixiado...
O analgésico típico para pacientes
em final de vida, é a morfina.
E em relação à morfina existe uma
ideia errada muito negativa.
A morfina adormece, a morfina
anula a lucidez,
a morfina torna o paciente
toxicomaníaco...
bom, eu creio que é preciso
afastar todas estas coisas.
Porque todos sabemos,
neste momento,
que a morfina usada em pacientes
com dor de intensidade severa,
não diminui a lucidez.
A sedação paliativa só é aplicada
em último recurso perante
dores intratáveis.
A sedação paliativa consiste em ministrar
fármacos sedativos suficientes
com a intenção de reduzir o nível
de consciência do paciente,
o suficiente para
assegurar conforto,
e controlar o sofrimento,
a dor, o sufoco, a agitação
Para tratar sintomas que não podemos
controlar de outra forma,
a que chamamos sintomas
refratários.
E para garantir que as pessoas
possam morrer sem dor,
possam morrer sem agitação ou
sem dificuldades respiratórias,
que é algo que aterroriza
as pessoas, não é?
Também é muito importante saber que
sedação terminal não é a eutanásia.
Que a sedação terminal não é colaborar
no suicídio assistido,
que a sedação terminal é uma ferramenta
terapêutica, como se diz,
é um processo completamente legal.
Estas duas circunstâncias,
são as mais frequentes para indicar
uma sedação paliativa.
Normalmente, está-se próximo
do final da vida
e esgotaram-se, também,
outras soluções
que não impliquem uma redução do
nível de consciência do paciente.
Para além da dor física, pode-se
sofrer por vários motivos,
emocionais, de origem social...
Portanto, a assistência não se
esgota no alívio da dor física,
a uma dor total corresponde
uma "medicina total"
que abarque todas as necessidades.
Eu considero os cuidados paliativos
um direito fundamental da pessoa.
Provavelmente, se revirmos a declaração
universal dos direitos humanos,
estão lá todas estas necessidades
de atenção no final de vida,
para preservar a dignidade
e o sentido da vida.
O doente e a sua família
embarcam num processo
de muita instabilidade
e intensidade emotivas.
Bom, às vezes tudo isso parece
uma montanha russa,
porque são momentos muito importantes
e ao mesmo tempo muito difíceis.
Sentimos raiva, culpa, pensamos
que estamos a exagerar,
que vai recuperar-se,
mantemos a esperança,
e depois, se calhar ao fim de dez
minutos, a esperança quebra-se
e voltamos a sentir
raiva outra vez.
Podem distinguir-se etapas ou
passos que são bastante comuns,
ainda que cada pessoa viva as coisas
à sua maneira, podendo variar a ordem,
a duração de cada passo ou
a existência de alguns.
A situação de cuidar de um
doente com doença avançada,
é, para o familiar,
para o cuidador,
uma situação de desgaste
físico e emocional.
Ao receber a notícia, frequentemente
começa-se por negá-la,
dizendo, por exemplo,
"deve ser um erro".
É importante procurar a maneira
de a comunicar ao doente com
franqueza, mas com tato.
Desde o início do verão,
todo o processo durou dois meses,
num primeiro momento não aceitou,
a médica disse-lhe que
sim...e ele "não".
Podemos compreender que é uma
notícia difícil de assumir
e a negação cumpre a
função de amortecedor,
que permite uma distância,
até que, psicologicamente,
se encontre preparado para
aceitar a nova situação.
O doente tem direito à informação,
mas também tem direito a não saber
ou a ir sabendo de acordo
com o seu ritmo pessoal.
O direito a saber não implica
a obrigação de saber.
Outro tipo de negação é a que
se produz à volta do paciente
ao fazer de conta que a
morte não vai acontecer.
É o que se chama "a conspiração
do silêncio".
Muitas vezes, os familiares,
com o objetivo de proteger,
não querem falar com o doente
do mau prognóstico
ou do fim de vida.
Isto coloca os doentes numa
jaula de incomunicação,
que muitas vezes leva a um
pior controlo sintomático.
Se o doente puder falar
abertamente das coisas,
ser-lhe-á mais fácil controlar
os sintomas em geral
e, sobretudo, a dor.
Aos doentes, aos pacientes, quando estão
com um grave problema de saúde
ou no final da vida,
sei que em muitas ocasiões,
vós, os cuidadores,
tentais ser tão cuidadosos,
que acabais por dizer,
"não lhe mostramos isto não
vá a situação alterar-se".
Eu dir-vos-ia que, com
toda a liberdade,
sobretudo deveis estar atentos aos
gestos, aos sinais que eles enviam,
e a partir daí, responder-lhes
na forma de perguntas,
e sentindo-se escutados,
a relevância, a centralidade
que tem tudo isso.
Aceitar a doença e a morte não
é o mesmo que resignar-se.
A resignação é passiva e paralisa
perante o sofrimento.
Mas a aceitação que
a morte é inevitável,
abre o caminho para
mudar as coisas.
Digo a todos os que estiverem assim,
nas mesmas circunstâncias,
que o encarem desse modo.
Não é nada de mais.
Além do mais, ainda que uma pessoa
queira pensar outra coisa,
não vai haver outra
coisa, é o que há.
Por isso, não vale a pena dar
muitas voltas ao assunto.
Inicialmente, o doente
pode reagir com raiva,
surge muito frequentemente
a pergunta "porquê a mim?" .
Nesse primeiro momento,
ele não aceitou.
Passaram-se alguns dias de
negação, depois de raiva.
Começou a ficar muito zangado.
Esta ira pode ir contra si mesmo,
contra os profissionais de saúde,
contra familiares ou acompanhantes,
contra Deus...
O mais normal é que a
raiva seja projetada
contra as pessoas de que mais
gosta e que cuidam mais dele.
Impaciência, frustração,
irritabilidade
e isto é suportado pelo
familiar no dia a dia.
Então, o familiar pode zangar-se
com o paciente,
e isso também gera uma ambivalência
que é um bocado difícil.
Como é que me posso zangar com
uma pessoa que vai morrer?
Mas o que acontece é que
a pessoa está irritada
e custa um bocado perceber,
que esta pessoa...
não é a pessoa que fala,
quem fala é a doença.
Pondo de lado alguns momentos de
mau génio, que também os houve,
de me responder mal e assim.
Mas eu compreendia-o, já
tinha males que chegassem,
era contra isso que ele lutava.
Eu não sentia que estivesse contra
mim, em nenhum momento,
era uma forma de desabafar,
de se aliviar, de dizer,
"Mas porque é que me calhou a mim?
Porque é que estou aqui fechado?
Porque é que estou a sofrer assim?"
Era simplesmente isso,
uma descarga,
uma forma de soltar toda a angústia
que o paciente leva.
Não é necessário rever os cuidados,
não é caso para sentir-se mal pensando
que não se está a fazer bem.
Mas ele estava consciente e recuava
e pedia-me perdão constantemente.
"Eu não quero, às vezes
estou nervoso,
custa-me aceitar, vou morrer
e não quero", dizia.
Era que eu teria querido para mim
e o que eu quereria para mim
foi o que tentei dar-lhe.
E também podemos transmitir
emoções ou sentimentos,
que nos façam sentir
culpados, não é?
Quando se vê que a pessoa
está a sofrer muito,
pode-se desejar que morra
para que não sofra
e depois pode ser difícil
lidar com isso.
Quando, na verdade, é muito justo
querer que a pessoa não sofra,
mas é um tipo de sentimento
que talvez não seja
socialmente aceite
e por isso geram um pouco de culpa.
Um dos sentimentos mais inapropriados
ou menos práticos,
por assim dizer,
é o sentimento de culpa.
E só prestaremos cuidados
de qualidade
se estivermos bem.
Negociação.
Ocorre um diálogo interno,
como se se estivesse a
negociar a sua situação.
Costuma estar relacionada com assuntos
pendentes e despedidas.
Mas uma vez celebrado o casamento,
"eu já cumpri e tudo
o que vier agora..."
e a mim disse-mo "tudo
o que me acontecer",
"já não me importa, se
tiver de morrer, morro,
se este é o meu final
já não me importa".
"Eu já cumpri com a minha
filha, convosco,
não quis estragar este dia
tão bonito à minha filha".
"E tudo o que acontecer agora..."
Ao aceitar que a situação
é inevitável
passa-se por uma espécie
de depressão
que muitas vezes não
se pode evitar.
Se se permite expressar a dor,
isso ajuda à aceitação final.
Nesse sentido, não servem para nada
as atitudes positivas forçadas
ou fingir para dar ânimo.
Muitas vezes são necessárias
poucas palavras,
mas o que sempre ajuda é estar
presente, disponível.
Falámos de todas estas coisas.
Falámos de todos os nossos medos,
de todas as nossas preocupações.
Abrimos totalmente
os nossos corações.
É importante abrir os corações...
Quero dizer, há coisas que
às vezes nos parecem enormes
e que parecem tão importantes
e depois não são importantes.
Então, essa necessidade de falar,
de ser ouvido sem julgar
o que ele estava a contar.
Essa foi também uma necessidade
muito forte que eu vi nele.
O distanciamento é o descanso
no fim da viagem.
Além disso, quando
chegar o momento,
julgo que vou até estar
contente e tudo,
quando chegar o momento.
Porque sei que vou
descansar também.
O doente reduz a sua
atividade ao mínimo,
fala pouco e perde interesse
por aquilo que o rodeia.
Deseja estar só ou com uma
companhia muito reduzida.
Isto acontece porque se está
a preparar para partir
e o acompanhante pode sofrer
ao sentir-se ignorado
se não compreende esta
etapa de distanciamento.
Precisa de se virar para si mesmo
e de se ir preocupando menos
pelos que estão à sua volta.
Às vezes, isso faz com que
os cuidadores se sintam mal.
Fá-los sentir que já não são úteis,
ou fá-los sentir que essa
pessoa de quem gostam tanto
já não precisa tanto deles.
É preciso deixá-los partir.
E para os deixar partir
é preciso permitir-lhes
esse desligamento.
Sentir que os entes queridos
não aceitam a morte do doente,
pode provocar angústia.
É importante "dar-lhe
licença" para partir.
O que se deve fazer é deixar
partir a outra pessoa.
E que parta tranquila,
pelos que ficam.
E disse-nos muitas vezes, não
quero que choreis por mim,
porque me fareis sofrer, quando estiver
lá em cima, se chorais por mim.
Quando chegar o momento
já estarei preparado.
Como gostas tanto dessa
pessoa e lhe queres bem,
dizes-lhe que sim, que
vá, que descanse,
que estamos com ele e que vamos
gostar dele para sempre.
De facto, quando estávamos
todos com ele,
demos-lhe licença para partir,
dissemos-lhe que podia partir.
Eu disse-lhe, papá, podes
ir, está tudo bem.
Estamos todos bem
e foste fantástico.
Eu gostava de falar um pouco sobre
o legado que nos deixou
a mulher de um paciente
que acompanhámos na sua casa.
Era um paciente muito jovem,
de trinta e sete anos,
diagnosticado com
um cancro no fígado
e a sua mulher acompanhou-o sempre.
Desde o início do diagnóstico,
até ao fim.
Ela, com esse desenho,
quis representar…
a linha violeta é
a linha da doença,
desde o diagnóstico até à morte
e todos esses bonequinhos
que aparecem por baixo
da linha da doença e da morte,
são todos os profissionais de saúde
que foram acompanhando
o doente no hospital,
as equipas de psicólogos,
os cirurgiões.
No momento em que entra,
já na fase final da doença,
a equipa de cuidados paliativos.
E no final ele decidiu recorrer
a uma unidade de cuidados paliativos
hospitalares para morrer
e também eles estão representados
no final desta doença, não é?
Este é o paciente, Carlos,
ia acompanhando Laura a
percorrer esta doença,
que tinha chegado à meta,
ao final da sua vida.
Ela, com este desenho, quis agradecer-nos
o acompanhamento
que teve da parte da nossa equipa
e dos restantes profissionais
que a acompanharam neste
longo processo.
"Para todos os integrantes do ESAD,
tornais fácil o que é difícil"
Que é de certo modo
um dos nossos lemas.
E depois de passar esses
dias de agonia com Carlos,
essas dores tão fortes e esses dias
que para nós foram muito
cinzentos e muito escuros,
quando chegou a equipa de paliativos,
de repente a casa,
eu tive a sensação de que
tinha chegado o sol, a luz.
As equipas de cuidados paliativos,
prestaram-me um serviço estupendo,
incrível, porque me
trataram como...
São os meus anjos terapêuticos,
de facto.
Sempre que chegava o dia,
era um dia alegre para nós.
Mais, houve um longo período de
quinze dias em que não viriam
e eu só dizia: "não vêm nos
próximos quinze dias?"
Não pode ser, precisamos
de vocês semanalmente,
vocês dão-nos uma injeção de vida,
uma injeção de esperança...
Tem a ver com sentires que partilhas
sangue e pele com outros seres
que te abrigam quando está frio,
que recolhem as tuas lágrimas
num potezinho para as transformar
numa poção curativa.
Por isso, obrigado por nos iluminares
com um raio de esperança,
por nos fazeres reparar
que um braço amigo
pousa nos nossos ombros para
nos acompanhar no caminho.
No bom caminho de um mundo
diferente e melhor.
Muitíssimo obrigado.
Olha, agora ajudam-me com carinho,
Podes ver como gostam de mim,
não me falta nada em cima
da mesa. Nada me falta.
Do que é que eu precisava?
Eu julgo que precisava
de tudo o que me deram.
Deram-me tudo!
Precisava de ferramentas
internas, que me davam,
precisava de ânimo, que me davam,
precisava de desabafar
e vinham ver-me e eu podia
falar com eles e desabafar.
às vezes chorava, às vezes ria,
às vezes partilhava
experiências bonitas.
Estão a viver uma situação igual
à nossa, com outro familiar,
estão na mesma situação que nós.
E por isso cria-se uma
espécie de cumplicidade,
de relação de amizade.
Mas é uma relação de amizade
que inclui o apoio,
inclui o darem-te ânimo,
a preocupação pelo teu familiar.
Histórias que se redescobrem,
histórias para as quais se volta
a encontrar significado.
Encontros. São histórias
de encontros.
Quando a vida se torna difícil,
voltamo-nos a encontrar com a
verdade dos que temos ao redor.
E porque é que nos voltamos
a reencontrar?
Porque estivemos muitos
momentos juntos, a falar,
de falarmos sós os dois,
de dizermos coisas que se calhar
não nos tínhamos dito.
Quando um cuidador ou cuidadora
diz a uma pessoa doente:
"teria voltado a escolher-te,
mesmo sabendo tudo o que
íamos passar juntos".
E mesmo sabendo-o, voltaria
a escolher-te outra vez
para viver esta parte
da minha vida contigo.
Sentiu-me muito próxima,
sentiu-me presente.
Sentiu o meu carinho,
sentiu, sentia-o.
Dizia-me: "Eu não sabia que
gostavas tanto de mim".
A cada momento vem o meu filho,
a minha nora e estou na cama.
Estou na cama
E não sabem se estou a dormir
ou se estou acordado
e abraça-se a mim e dá-me um beijo.
Dá-me um beijo.
Meu Deus!
Isso vale muito.
Cada pessoa é diferente. E por
isso é também uma adaptação
a um conhecimento das necessidades
daquela pessoa.
Mas pode-se sempre preguntar.
Há alguma coisa em que achas
que te possa ajudar?
Acompanhar simplesmente,
estando ali, disponível.
Pode haver uma mudança e
às vezes apenas é preciso
que a outra pessoa
saiba que estás ali.
Ou seja, não se trata de dizer
nada, trata-se de ouvir.
Precisava de estar sozinho e
passava muito tempo sozinho,
mas não se incomodava
se eu lá estivesse.
Ou seja, se eu me aproximava
e simplesmente dávamos a mão
e ficávamos em silêncio,
ele agradecia muitíssimo.
Mais do que dizer, eu recordava-lhe,
o ver do sol em cada manhã,
e dizia: outro dia que vejo o
sol, outro dia que amanheceu.
O que vos dizia antes, sobre
a luz ser tão importante.
O acompanhante tem a oportunidade
de se reconciliar
e fechar também a etapa que
viveu junto do doente.
Queria dizer que sim,
é muito importante
que nos possamos despedir
de uma pessoa
que sabemos que vai falecer;
se passarem por essa situação,
é bom que se despeçam dela
que comuniquem com ela
e com o resto da família.
Parece-me importante para que
quando essa pessoa falte
se lide melhor com situação.
O acompanhante pode prestar
atenção ao cuidado da sua
própria situação interna para
que possa dar o melhor de si.
Essas ferramentas foram
muito úteis para mim.
Todo o trabalho com a atenção,
com a reconciliação.
E nos últimos tempos, todo o trabalho
com cerimónias, com pedidos.
Aprender a retirar carga
dramática às situações.
Aprender a rir-se num dado momento,
inclusivamente na adversidade.
Uma característica que ele tinha,
e de que toda a família partilha,
é o sentido de humor.
Isso parece-me muito importante
no processo pelo qual passámos,
foi muito importante.
Para as pessoas que estão como eu?
Levantem-se de manhã, riam muito,
contem anedotas e não liguem
ao que os outros pensam.
E acabou-se. E no dia
em que morrermos,
que me enterrem para
não cheirar mal.
A pessoa está viva e precisa
que os que estão ao redor
a tratem como viva, não como
uma pessoa que vai morrer.
Depois vou à escola de adultos,
às três da tarde. Falo
com um, falo com outro.
Hoje, por ser sexta, quando
se acaba a escola, vamos
ao café, a nossa segunda casa.
E tomamos o nosso cafezinho.
Falamos, rimos, de tudo.
E assim passo o tempo.
O mais satisfatória possível,
no sentido de não
o obrigar a comer.
Se quisesse comer que comesse,
senão, não havia problema.
No fim, custava-lhe muito
comer, alimentar-se
e eu passava a vida na cozinha
tentando fazer pratos diferentes
para ver qual o mais adequado...
em vez de estar mais atenta
a outras coisas que me dizia,
estar mais atenta ao seu
cansaço, ao esgotamento,
a que já não aguentava mais, perdia
tempo com outras coisas.
Este tempo de convivência,
de partilha, realmente
eu diria que ajuda muito.
É uma oportunidade de
crescimento interno,
de aprendizagem e de ganhar
coerência pessoal.
Mas quando a doença nos para,
de repente começam a surgir
muitas perguntas.
Perguntas relacionadas com
algo tão simples como
"Porque é que me acontece a
mim?" "Era o momento certo?"
porque parece que era uma idade
na qual talvez não se esperasse
estar imobilizado pela doença
ou estar próximo da morte.
Ou perguntamo-nos se tivemos
uma vida razoavelmente boa,
tentando fazer o bem à nossa volta.
E sentimos que a vida nos trata
injustamente com estas doenças.
Estamos num cenário onde aparecem
perguntas pelo sentido,
perguntas pelos valores,
também perguntas sobre
se me encontro em paz
na minha relação com os outros,
na relação comigo mesmo
ou na relação com um
ser transcendente.
Qualquer pessoa, independentemente
das suas crenças ou ateísmo,
pode sentir necessidade
de se reconciliar
ou de dar sentido à sua vida.
Gostaria de clarificar que
a dimensão espiritual
nem sempre tem um
conteúdo religioso.
Mais, em muitos casos há pessoas
que têm uma vivência espiritual
sem uma aproximação ao religioso.
Todas as pessoas têm uma visão
espiritual das coisas,
ainda que nem sempre seja reconhecida,
nem sempre lhe demos nome,
porque essas dimensões que
têm os seres humanos,
que aparecem, mas que normalmente
caminhamos com elas
é como o ar que também não vemos,
sabemos que existe e
que nos ajuda a viver.
O preconceito ou a timidez no
momento de falar destes temas
podem bloquear algo que é
fundamental ter em conta.
Às vezes o problema está
no próprio cuidador,
que não ousa falar disso,
porque sabe que significa
entrar numa situação
de comunicação profunda e, às
vezes, de comunicação dolorosa,
porque tem a ver com "despedir-se",
tem a ver com o fim.
Não se trata de fazer uma terapia
ou direção espiritual.
Sabes o que não me ajuda?
Quando as pessoas querem
impor as suas crenças,
a sua forma de ver a vida.
Por exemplo, a religião.
Eu sou agnóstico, por exemplo,
e respeito muito os
que têm uma religião.
Respeito-os muito, realmente,
mas não sou nada religioso.
Prefiro ver a morte, desde
fora do âmbito da religião.
Trata-se de acompanhar enquanto
o próprio doente
vai encontrando os seus temas
e argumentos particulares.
Então, entrou o sol, fechou
os olhos e disse,
estou na praia do céu, ao solzinho.
Isso vai ajudar, sobretudo,
a não bloquear.
Isto acontece-nos no plano emocional
e também no espiritual.
Ou seja, a importância
no acompanhamento,
que a pessoa possa pôr em palavras
tudo o que está viver.
Explorar seria a palavra
chave para acompanhar.
Porque ao explorar, permite-se
que o outro expresse as dúvidas,
as inquietudes, os recursos,
as capacidades, os medos.
Creio que essa é a forma mais
fundamental de acompanhar.
Quando a Victoria morreu, podem imaginar,
a minha dor foi tremenda.
Emocionalmente, estava destroçada
porque não parava de chorar,
mas aconteceu algo impressionante
e essa experiência,
esse registo que comentava antes,
de que as pessoas me aconchegavam.
Eu sentia-me aconchegada,
protegida,
senti-o do mesmo modo
mas a partir de dentro,
havia algo que me acompanhava.
Não sei... a vida.
Era uma sensação de sentido,
de que a vida estava comigo
e que a vida continuava connosco,
e que a vida me apoiava
nesse momento
mais do que em qualquer outro
momento da minha vida
e de todo este processo.
Muitas pessoas acham que não podem
ajudar os entes queridos,
porque não sabem o que
fazer, o que dizer,
porque manifestam os seus temores
e pensam que não tem
nada a oferecer.
Mas o simples facto de escutar
e acompanhar é já uma grande ajuda.
Quando as pessoas se sentem,
e nós nos sentimos,
escutados, acolhidos,
nesses processos é como se
se libertasse o espírito,
como se se libertasse a alma.
E isso é uma autentica
maravilha, é uma dádiva.
Por outro lado, não se trata apenas
da ajuda dada pelo acompanhante.
Sinto-me orgulhoso sobretudo
por, nestes últimos tempos,
ter-lhes dado a tranquilidade
para que eles possam enfrentar
isto com mais sossego,
que eles não tenham
esse medo da morte.
Eu sei que para eles, sobretudo
para os meus filhos,
é um tema muito forte, porque uma tem
quinze e o outro vinte e um anos.
Mas eu sei que vão ser fortes
e vão saber enfrentar
e vão saber estar ao meu
lado até ao último momento
e eu vou ficar-lhes
extremamente grato.
Impressionante foi vê-lo,
depois de todo o processo,
depois de ter morrido.
E ficou com uma paz...
Ficou com uma cara de alegria,
tinha cara de alegria.
Tinha um sorriso de tranquilidade
e de alegria
que nos fazia felizes
por termos podido levar a cabo
entre todos o que ele
tinha querido...
A proximidade do fim,
costuma implicar uma reconstrução
da própria vida.
Valoriza-se o que se fez,
o que se deixou de fazer...
Encontrar um significado para a
vida, sentir que "valeu a pena",
ajuda a recompor a
própria biografia
com base nas coisas mais positivas.
Poder assim reviver,
de alguma maneira,
momentos que foram felizes.
Poder agradecer a quem quer
que seja, ou a ninguém,
realmente este tempo
passado juntos.
Recuperar as histórias
de todas essas pessoas
que estão à nossa volta
e que, realmente, vale
a pena escutar,
não só por ser benéfico
para a outra pessoa,
estás a ajudá-la
a organizar a sua vida
e reconciliar-se com muitas coisas,
mas também para nós próprios...
porque nos transmite
uma história de vida,
que a nós, com certeza,
nos vai ajudar em muitas ocasiões,
de facto, para mim é das
coisas mais gratificantes
com que me deparei,
parte dessa pessoa fica em mim.
Também se faz uma
revisão do legado,
o que se deixa a outros ao partir.
O que se fez pode continuar
na família,
mas também se pode tratar
de um legado intelectual
ou artístico,
de avanço social ou no âmbito
profissional, etc.
Há pouco tempo, uma
pessoa contava-me
que trabalhou muito
em investigação.
Saber que tinha contribuído um
pouco para a ciência implicava
que algo de si ia permanecer quando
ele já cá não estivesse.
Estava, de algum modo, a transcender
a sua própria experiência
mais além de si mesmo.
Esta também é uma dimensão chave.
Os cuidadores podem dizer
à pessoa que está doente,
olha, quando tu não estiveres cá, vais
continuar a estar de outra forma,
para nós foste um tesouro,
foste uma dádiva.
Pode-se elaborar um documento,
um álbum, um testamento escrito,
uma gravação de vídeo
ou de voz, ou seja,
um suporte físico onde
registar as recordações.
Fez até um vídeo para a despedida.
Colocou as suas imagens
e também imagens de nós
e colocou as suas canções.
Estávamos na casa mortuária e estávamos
com ele, porque eu sabia
que o Carlos... estava com ele nos
trabalhos que ele tinha realizado,
estava ali connosco.
Não queria que houvesse lágrimas...
A evocação e a expressão
também se podem apoiar
em materiais como fotografias,
música...
Esta fotografia é um
dos maiores apoios
pelo qual o meu pai
começou, e eu quis
que ele se apoiasse nas coisas
positivas e construídas
e no seu propósito.
Ele tinha um propósito bem definido
que era o de cuidar.
Ele cuidava de plantas, de
animais, cuidou da família,
cuidou dos filhos e
cumpriu esta missão.
Então disse para nos apoiarmos
nas coisas positivas.
Acontece que nunca tínhamos
agradecido ao meu pai
por tudo o que fez por nós desde
que a minha mãe morreu.
Então, dedicamos-lhe este texto:
"Obrigado pelo teu esforço,
por seres um lutador,
um exemplo para todos, por tomares
as rédeas e cuidares desta família,
obrigado por tudo
isto e muito mais".
Sente-se a necessidade
de fechar o ciclo vital.
Também a reconciliação
com outras pessoas
principalmente com aquelas
de quem gostamos
mas com a vida... as
coisas que fizemos
ou as coisas que deixamos por
fazer, porque às vezes...
sentimos, como mudamos as
prioridades nesses momentos
e preocupam-nos mais outras
coisas mais fundamentais,
há ocasiões em que uma
pessoa sente que não...
que não fez certas coisas
que deveria ter feito
mas também valorizamos
o que fizemos.
Para a pessoa que acompanha
ou para os entes queridos
que acompanham esse doente,
também é importante despedir-se bem,
resolver as coisas e reconciliar-se
... porquê? Bem, porque
a vida termina
mas a relação com essa
pessoa vai continuar,
e isto ajuda a que o processo
de luto seja mais fácil.
A única coisa importante,
que é fundamental,
que é nuclear na vida das pessoas,
é podermo-nos sentir
amados e poder amar.
É poder dizer, valeu a pena estar
contigo e caminhar contigo,
termos caminhado juntos.
A proximidade da morte e o progressivo
desapego pela vida,
pode colocar o doente em condições
de aprofundar a sua experiência
tanto de comunicação com os outros,
como sobre o sentido da sua vida
e a possibilidade
da transcendência.
Eu acho que ele estava a preparar-se
para esse momento.
E por isso acredito
que esse silêncio,
raro nele, que nunca
parava de falar,
era isso, o aceitar da sua
partida, que ia embora.
Porque, como é óbvio, quando
se dá um momento assim,
em que já esperas o teu fim,
consideras muitas coisas.
E aí ele exteriorizou muita coisa.
Extremamente enriquecedor. Muito.
A morte não tem de ser necessariamente
aterradora ou triste.
Transformando as condições,
muitas pessoas podem chegar a
aceitá-la numa profunda paz.
Durante os dois anos,
houve uma evolução,
em que eu próprio tenho
dificuldade em acreditar.
Primeiro, o golpe,
o impacto de saber
que me diagnosticaram uma
doença destas, tão dura.
E depois foi, realmente,
em menos de um ano,
admitir a doença com
esta naturalidade.
Sem nenhum tipo de ansiedade,
nenhum tipo de medo do que pudesse
advir, pelo contrário.
Sim. Esteve completamente
tranquilo.
Foi uma morte muito suave.
Não fez nenhum tipo
de gesto nem nada.
Bem. Muito tranquilo. Agarrando-o,
agarrava-o fisicamente.
Eu coloquei a mão no seu peito,
peguei numa mão, o meu irmão
pegou na outra mão.
Estávamos todos a acompanhá-lo.
E a minha irmã disse: "Pai, se
soubesses que era tão fácil,
com certeza terias partido antes."
Em relação a esse momento,
o que perceciono e que sinto
é que ele realmente
morreu como queria.
E morreu em paz.
Essa placidez na morte foi muito
facilitada pela equipa,
estando presente, sabendo
atuar nesse momento.
E passou rapidamente
da vida à morte em nada,
num suspiro.
Ele fechou os olhos e
assim foi, assim foi.
Não identifico o acompanhamento
do fim da vida
apenas como o acompanhamento
nestes últimos meses,
neste caso três, mas sim
os dois últimos anos.
Para mim, agradeço por ter tido
a oportunidade, nesses dois anos,
de fazer todo o processo.
É a confirmação, por experiência,
de que existe algo mais
do que o que vemos com estes olhos,
do que vejo com estes olhos
e do que sinto com este...
talvez transcendência e
a experiência de "nós".
Não acho que isto se pudesse ter
sido ultrapassado sem o apoio,
a ligação, a união entre tantas
pessoas que me acompanharam.
E, sem dúvida, não
o trocaria por nada.
Mais, se tivesse de voltar
a passar por isso,
imagino que voltaria a fazê-lo.
Sentir-me bem comigo mesma.
Ou seja, eu fiz tudo
o que tinha que fazer.
Essa paz, essa tranquilidade de dizer,
fiz tudo o que tinha que fazer.
Considero-me forte, mas não pensei
que pudesse ser tão forte.
Mas quando uma pessoa se encontra
numa situação assim,
nunca se sabe até onde vai chegar,
até onde pode chegar.
Enfrentei a vida olhos nos olhos.
Enfrentei a vida olhos
nos olhos e ...
dizer "Calhou-me viver
isto e sigo em frente".
Foram momentos muito importantes
na minha vida.
Foram momentos em
que qualquer coisa,
pegar-lhe na mão simplesmente,
ou simplesmente passear no
hospital pelo corredor,
ou qualquer coisa. Era viver
as coisas muito intensamente.
A generosidade das pessoas
que me permitiram acompanhá-las
nestes momentos.
Julgo que é realmente
um ato de generosidade,
poder participar num momento
importante das famílias.
Cada pessoa que morre
e que eu tenha tratado,
claro, há uma parte de mim
que vai com aquela pessoa.
Há uma parte de mim que pode ir.
Mas, não sei, o que te
fica naquele momento,
de ter podido ajudar aquela pessoa,
é tão grande que eu...
não sei, pensava que no coração
não podia haver muitas pessoas.
Eu pensava que não podias
amar tantas pessoas.
E a verdade é que,
quanto mais amas,
mais pessoas cabem no teu coração.
A certa altura, eu
decidi continuar.
Creio que dá muito sentido
à minha vida.
Que me confronta menos com
a minha própria morte,
ainda que pense na minha morte
ao estar presente muitas vezes
na morte dos pacientes.
É uma escola de vida, não
é uma escola de morte.
É uma escola de vida.
Porque eu não lido com corpos,
lido com pessoas vivas.
Quando continuamente vemos pessoas
a morrer e vemos como se despedem
como valorizam os detalhes,
os momentos, os sorrisos.
Vemos tudo isso nos pacientes.
Aí começamos a valorizar,
falo por mim,
o sentido das coisas
e a importância que têm as coisas
na minha vida pessoal.
E o valor da vida
e o valor de amar,
é o que aprendemos aqui, realmente
e não tem preço.
Dizem: "que horror, como
podes trabalhar nisto?"
"Como podes estar nisto
há quinze anos
e ir contente para o trabalho?
Isto é horrível!"
"Todo o dia com a morte, todo
o dia com a doença grave,
todo o dia com o sofrimento..."
E, realmente, há que dizer que
quando mudas o ponto de vista,
quando aprendemos a ver os doentes
não como uma pessoa
que tens de curar,
mas sim como uma pessoa
a quem temos de ajudar,
de acompanhar no final da vida.
Vemos a utilidade de estar ali,
como médico e também como pessoa,
acompanhando-o, é tão
gratificante que,
realmente nos ajuda a que o dia a
dia seja muito mais gratificante
do que em muitas outras
especialidades médicas.
E foi o que eu tentei fazer.
Viver a minha vida o melhor
possível, ter uma família.
ter uma família que gosta de
mim e da qual eu gosto também
e com isso estou mais do
que satisfeito com a vida.
Estou satisfeito, satisfeito.
Por isso, a todos os que estiverem
nas minhas circunstâncias,
envio um abraço
e espero receber o vosso também.
Sobretudo, fico com os sorrisos.
No meio da tristeza,
no meio da pena
e no meio da dor emocional,
esse momento em que se cria uma
ligação e nasce um sorriso.
O sorriso sereno dos doentes
em muitos momentos.
Parece mentira, mas
as declarações de
amor mais bonitas,
vi-as entre casais que se despedem.
Casais que se cuidam na
última fase da doença.