E se vivêssemos sem dinheiro?
E se pudéssemos, por um golpe de magia,
suprimir a moeda,
viver num mundo em que partilhássemos
os recursos que a Terra nos dá?
Gostariam disso?
Público: Sim.
Sentem-se tentados?
Comecei a fazer esta pergunta
nos Países Baixos.
Estava a estudar "marketing"
na Universidade de Haia.
Do "marketing" até à ideia de viver
sem dinheiro, vai uma grande distância
ou talvez não.
De certa forma, eu tinha-me
apercebido daquele mundo
que Frédéric Beigbeder descreve
no seu livro "99 francs",
o mundo da publicidade
e do "marketing" que consiste
em desculpabilizar o consumidor,
para lhe vender produtos
que não são bons para ele
nem para o ambiente.
Foi aí que comecei seriamente a duvidar.
Eu era uma pessoa normal.
Gostava de noitadas,
bem regadas, jogos de futebol.
Eu estava ao corrente
do que se passava no mundo
mas não me afetavam muito.
Depois, comecei a ver
uma série de documentários
que me abriram os olhos,
e compreendi que o meu dia-a-dia,
as minhas compras, o que eu fazia
tinham um impacto direto no mundo,
criavam injustiças.
Aí, pensei: "Ben, tens que mudar".
Tinha dois amigos, Raphael e Nicolas.
Em conjunto, começámos
a proceder a uma série de mudanças.
Passámos a ser vegetarianos.
Começámos a boicotar certos produtos,
nem éticos nem ecológicos.
Prestámos atenção ao consumo da água
e, sobretudo, pusemo-nos a fazer
auto-stop para nos deslocarmos.
Uma tarde, encontrávamo-nos
numa bomba de abastecimento,
em plena noite, bloqueados,
não havia muito trânsito.
O local não era especialmente bucólico
mas sentíamo-nos bem.
Até tivemos uma ideia.
"Seria fantástico partir assim,
à aventura,
"viajarmos livres, sem dinheiro".
Eis-nos, seis meses depois,
um alemão, um francês, um italiano,
na berma duma estrada
para os Países Baixos.
Isto começa com uma brincadeira,
mas é uma história séria.
Aliás, a ideia tinha evoluído.
Tínhamos comprado mochilas solares
para fazer uma viagem até ao México
à boleia, de carro e de barco.
Também queríamos fazer um documentário.
Tínhamos dois objetivos principais:
uma viagem com uma pegada ecológica
o mais baixa possível,
e sem dinheiro, para só consumir
o que já lá havia.
As primeiras 24 horas foram intensas.
Fizemos menos de 50 km.
Encontrámo-nos num vão de escada,
a tremer de frio, até ao dia seguinte.
Lá fora, fazia 10º C negativos.
Partir em janeiro não é boa ideia.
Mas, sobretudo, estávamos esfomeados.
No dia seguinte, esperamos quatro horas.
Ninguém nos dá boleia
e começamos a ter dúvidas.
Queríamos ser espertos mas, talvez,
não fôssemos capazes.
Felizmente, uma viatura para,
o destino ajudou-nos.
Continuamos, atravessamos
a Bélgica, a França.
De uma autoestrada para outra,
aproveitamos os restos
das bandejas de refeições,
e chegamos, cinco dias depois,
a Barcelona.
É uma primeira etapa importante.
Encontramos um grupo de destituídos
que chegam de vários lados
e vivem sem dinheiro, ou quase,
em apartamentos
ou edifícios abandonados,
e nos iniciam na arte da recuperação.
Aprendemos a vasculhar e a pedir
no fim dos mercados,
nos restaurantes, nas padarias,
para nos alimentarmos.
Descobrimos a enormidade
dos desperdícios
e que comer sem dinheiro,
infelizmente, não é um problema.
De seguida, continuamos
até ao sul de Espanha.
Encontramos a boleia com os camionistas
que têm o direito de ter
com eles um copiloto.
Assim, podemos embarcar
no "ferry" para África.
Damos os primeiros passos em Marrocos,
é um verdadeiro choque cultural.
Nesta altura, parecemos mesmo vagabundos.
Cheiramos mal, não há que enganar.
Depressa aprendemos a explicar
aos marroquinos o que fazemos
com duas palavras muito simples:
"waluf fluze".
Aí, abrem-se as portas,
as pessoas compreendem-nos
e descobrimos uma generosidade sem igual.
Moussa, por exemplo, encontra-nos
na berma da estrada, em plena noite.
Detém-se sem medo e insiste
para nos levar a casa dele.
Quer que fiquemos três dias,
porque está escrito no Corão:
quando se encontra um viajante,
é preciso dar-lhe abrigo e comida.
O melhor foi que, na manhã do quarto dia,
entra no quarto e diz:
"Pronto, já sou pai!"
Leva-nos ao hospital, insiste
para que peguemos no bebé,
e falamos em alemão,
em italiano e em francês.
Diz-nos que somos como os três reis magos
que viemos anunciar a chegada
do seu filho.
(Risos)
Chama-lhe Iahia, o eleito
Esta generosidade repete-se durante
as seis semanas que passámos em Marrocos,
durante as quais procuramos
uma embarcação para as Ilhas Canárias.
Por fim, encontramos um belga em Agadir,
com um pequeno veleiro de 10 m,
que aceita levar-nos.
Claro, damos saltos de alegria.
Para nós, é o primeiro
obstáculo ultrapassado.
Mas a alegria é de curta duração.
Trinta minutos depois, saímos do porto.
Aquilo baloiça em demasia e ficamos
aos vómitos até ao dia seguinte.
Não é muito agradável, mas não é grave.
Chegamos às Canárias
e passamos lá cerca de mês e meio.
Todas as manhãs, vamos ao porto
procurar marinheiros, capitães,
tentar que nos aceitem,
encontrar um barco para as Américas.
Vivemos numa casa abandonada,
aperfeiçoamos a arte da recuperação
e esperamos.
Por fim, encontramos dois italianos,
Marco e Francesco
que tinham posto um anúncio na capitania.
Procuravam duas raparigas,
de preferência loiras, para a travessia.
Como já compreenderam,
não as encontraram
e aceitaram levar-nos, em vez delas.
O acordo era simples: limpamos,
cozinhamos, fazemos quartos,
e nós ensinamos-lhes francês e espanhol.
E lá partimos à aventura.
Para nós, é ótimo, é o pior
obstáculo que vai ao ar.
A bordo, é uma experiência magnífica.
Sobretudo, é uma oportunidade
para nos distanciarmos desta viagem,
porque muitos nos repetem
— e vocês talvez pensem o mesmo —
e o capitão todas as manhãs nos diz:
"Vocês não viajam sem dinheiro,
viajam com o dinheiro dos outros".
De certa forma, não está errado.
A gasolina, a eletricidade, as coisas
recuperadas são produzidas com dinheiro.
Mas a nossa viagem passa para além
desse aspeto material.
A ideia é aprender a não controlar nada,
a viver do que a vida nos dá,
do que as pessoas nos trazem,
de deixar andar.
É também a descoberta de um outro mundo,
de uma outra realidade.
Criamos um elo mais humano
com as pessoas que encontramos,
é isso que nos anima e começamos
a sonhar com um mundo melhor.
A travessia dura três semanas
até ao Brasil.
Aí, é mais um choque.
Encontramo-nos com centenas
de irmãos desafortunados
que também vivem sem dinheiro,
só que não por escolha própria.
É difícil arranjar comida.
Vasculhamos alguns restos
mas não conseguimos encher o estômago.
Para Nicolas, é difícil.
Está farto desta viagem masoquista.
Não está nada convencido
com esta ideia do dinheiro.
Para ele, é um utensílio
que pode ser utilizado de forma útil.
Não compreende a nossa busca como nós.
Mas Raphael e eu somos casmurros,
descobrimos a pobreza
e temos vontade de a experimentar
até ao fim.
Por isso, decidimos continuar.
Separamo-nos e Raphael e eu
voltamos à estrada.
Ficamos bloqueados durante três dias
numa bomba de abastecimento.
Na manhã do quarto dia, acordo em pânico.
Todas as minhas coisas desapareceram,
a minha mochila, a câmara, tudo.
É uma coisa terrível.
Imagino que já aconteceu
a alguns aqui, em viagem,
faz parte da viagem.
Mas eu não sabia o que fazer.
A mochila, ou seja, o computador
e muitas coisas para fazer o documentário.
A escova de dentes e essas pequenas
coisas importantes do quotidiano.
O passaporte e o cartão do banco
que eu guardava escondidos no saco,
para uma eventualidade.
Difícil, mas rapidamente, percebo
que é talvez o destino
que me dá um empurrãozinho.
Há meses que me gabava
da ideia de uma viagem sem dinheiro,
que discutia com toda a gente
a importância do que fazíamos.
Talvez fosse importante que o fizesse
sem a segurança do cartão do banco.
A partir daí, eu era o que pretendia ser,
um viajante sem dinheiro.
Retomámos a estrada e Niévès,
a namorada de Raphael, veio ter connosco.
Com as suas belas pernas, o seu sorriso,
tudo se tornou mais fácil.
Curiosamente, já não
ficávamos à espera, na estrada.
Era fácil encontrar alojamento
e tínhamos sempre o estômago cheio.
Isso permitiu-nos ver outra coisa,
outros aspetos da viagem,
especialmente as injustiças
que marcavam o caminho.
Por exemplo, campos de ananases
poluídos de pesticidas
para responder à procura europeia,
hangares enormes a abarrotar
de milhares de galinhas poedeiras,
"maquilas", ou "sweat-shops",
essas empresas sem impostos
que produzem "jeans" a preços baixos
para as grandes marcas
e cancros dos trabalhadores
que são ignorados.
Outros tantos encontros
que confirmam a nossa escolha.
Esta ideia de viver sem dinheiro,
de pôr em causa este sistema
financeiro, não é em vão.
Decidimos ser veganos
para maior coerência,
para consumir o menos possível
e voltamos a partir.
Chegamos ao México,
onze meses depois da partida:
25 000 quilómetros percorridos,
centenas de encontros
e, sobretudo, um sonho persistente:
E se pudéssemos viver sem dinheiro?
Claro, esta viagem não foi
totalmente sem dinheiro.
Até utilizámos 70 euros
para refazer o meu passaporte,
e pagar taxas nas fronteiras.
Mas descobrimos uma outra realidade,
um mundo feito de partilha, de entreajuda,
em que as pessoas dão
ou trocam os recursos disponíveis.
É o que nos leva a regressar à Europa.
Para mim, o regresso a França
é sinónimo de regresso à realidade.
Toma a forma de uma dor lancinante
a nível dos molares.
Tenho 22 cáries, certamente graças ao chá
que os marroquinos oferecem a toda a hora.
(Risos)
Vocês vão dizer que vaguear
sem dinheiro é uma coisa,
mas, para nos tratarmos, como é?
Confesso que nem quis acreditar
quando a minha irmã me leva à dentista
que sabia da minha aventura
e que me diz:
"Ok, podemos fazer um acordo
não monetário".
Trata-me dos dentes, porque era urgente
e, em compensação,
arranja um acordo com a mãe dela.
Eis-me fazer companhia
a uma senhora de 84 anos,
a tratar do jardim,
a fazer pequenas reparações
e, sobretudo, a escutá-la.
Isso dura um mês e meio.
É uma experiência muito rica
e, para mim, uma confirmação.
Imagino um mundo onde houvesse
pessoas com necessidades
e outras pessoas com recursos
e tudo se equilibrasse.
Eu precisava de tratamento,
uma dentista ajudou-me.
Uma idosa precisava de companhia,
e eu pude oferecer-lha.
Digo-me que, afinal, é possível.
Um único problema,
um verdadeiro problema,
é que não é legal.
É trabalho de mercado negro.
Não entra no quadro jurídico legal.
Em Franças, é legal vender armas
mas, dar uma ajuda, não.
Portanto, temos um problema real.
No entanto, estou convencido
de que a economia da doação é possível
e é uma alternativa económica real
para este sistema.
Certos economistas defendem-na:
Bernard Maris, Jean-Michel Cornu
e mesmo Charles Eisenstein, nos EUA.
Estipulam que esta economia
é uma das únicas
que permitem uma distribuição
equitativa das riquezas
segundo as necessidades de cada um.
A grande vantagem é que
a doação dá felicidade
tanto a quem dá como a quem recebe.
O problema é a contabilização.
Podemos contabilizar a economia da doação?
Não. É impossível.
Aliás, é contrária ao princípio de base,
a não condicionalidade.
Que fazer? Como legalizá-la?
Uma única ideia e uma pista:
pô-la em prática.
Foi aí que o nosso projeto
de ecovilas tomou sentido.
Queremos abrir um espaço,
uma espécie de laboratório vivo,
para experimentar a economia da doação,
doar o nosso tempo,
a nossa energia, os nossos excedentes,
sem nada esperar em troca
— copiar o modelo natural,
a árvore que dá os seus frutos.
Concretamente, daremos cestos de frutos
e de legumes biológicos
a quem não pode comprá-los.
Daremos cursos de francês,
de espanhol, de música, de ortofonia,
de arquitetura natural,
organizaremos conferências, palestras TED,
oficinas para construir painéis solares
ou todo o tipo de máquinas
sem eletricidade.
Participaremos na vida das comunidades,
ajudá-las-emos a orientarem-se
para uma política de desperdício zero,
passaremos tempo com as pessoas idosas,
criaremos todo o tipo de atividades
e, sobretudo, abriremos o espaço
para que outros venham
experimentar connosco,
para aprender a receber porque,
afinal, é o que é mais difícil
— dar é fácil, mas receber é difícil,
devido ao sentimento de inferioridade —
aprender a receber para, depois,
poder dar com humildade.
Não será perfeito,
Daremos em função dos nossos recursos
e quando precisarmos
de alguma coisa, pedi-la-emos.
Funciona como o karma.
Acreditamos nisso.
Pode parecer uma utopia
mas é por isso mesmo
que o projeto se chama "Eotopia",
porque a utopia é, tal como o horizonte,
um objetivo para o qual temos que avançar,
Também haverá que pagar taxas e impostos
e outros encargos, obviamente.
Faremos apelo a doações financeiras
que utilizaremos com toda a transparência.
Utilizaremos dinheiro, no início
e depois havemos de encontrar forma
de passar sem ele.
Aliás, estamos convencidos
de que podemos passar sem ele.
Será necessário encontrar o meio
de mostrar este protótipo,
de nos orientarmos
para uma sociedade nova,
para que a sociedade se force
a definir um quadro legal
porque a economia da doação
é uma coisa que existe.
Sete mil milhões de seres humanos
utilizam-no quotidianamente.
Vocês mesmos, vocês dão.
Levante a mão quem dá
quotidianamente tempo e energia.
Estão a ver? Toda a gente.
Toda a gente faz doações.
Mas a doação não é
uma economia legal, reconhecida.
O que podemos fazer
para que esta economia retome o seu lugar?
Antigamente, era o único sistema
económico natural que existia,
Podemos experimentar,
criar espaços de gratuitidade,
ecovilas como a Eotopia,
doar simplesmente, doar hoje.
continuar a alimentar essa economia
para que, pouco a pouco,
ela cresça e ocupe lugar
em relação à economia financeira.
Se, tal como eu, estão convencidos
de que a economia atual
baseada na moeda e nas finanças,
cria desigualdades,
e gostariam de a mudar,
mas dizem que é impossível,
que somos impotentes,
não tenho grandes teorias
— lamento, bem gostaria —
mas faço um simples convite:
dar, dar um pouco todos os dias,
fortalecer esta economia da doação,
esta economia paralela,
para que ela, pouco a pouco,
abafe a outra economia.
Tenho a certeza de que
podemos chegar, um dia,
a responder a todas as necessidades
com a doação,
se nos dedicarmos todos a isso.
É assim, demos porque a Natureza dá,
demos porque isso nos faz felizes
hoje e amanhã.
Obrigado.
(Aplausos)