Santo Padre, comecei a escrever-vos
há dois anos,
numa manhã de primavera
numa aldeia das Langhe,
com as ruas de calçada
que sobem em espiral até à praça.
Na praça, um castelo
e uma igreja antiga,
como tantas outras, em Piamonte.
A partir dessa praça,
o vale abre-se a perder de vista.
Ao fundo, colinas cobertas de bosques,
castanheiros e aveleiras,
mais abaixo, vinhedos e campos de milho,
a beleza das Langhe.
Ali a beleza extraordinária da paisagem
convive com o horror de certas famílias,
a minha, burguesa, perante
perante a indiferença dos outros.
Santo Padre, chamo-me Ginevra,
tenho 40 anos, sou de Turim.
Ali cresci e frequentei o liceu.
Depois conheci o homem
que viria a ser o meu marido,
Foi no outono.
Ele era das Langhe, de Cuneo,
um jovem magricela, de bons modos.
Tinha-se inscrito em Medicina,
em Turim, na rua Massimo d'Azeglio.
Naquele dia, a neblina do Pó
inundava o parque,
o ar embriagava-nos,
éramos felizes só por nos olharmos.
Um sonho difícil de esquecer.
Formou-se, especializou-se.
Casámos, uma boda sumptuosa.
Mudei-me para a aldeia dele.
O primeiro filho: Matteo,
um presente de Deus.
Depois Pietro e Luca, gémeos.
Pedro é a pedra sobre a qual
Jesus fundou a sua Igreja.
Lucas é a luz, o preferido
de Nossa Senhora.
São Lucas é o patrono dos médicos.
Francesca: olhos verdes e risos dourados,
olhos salientes... parecida comigo.
Os meus filhos são formosos.
Têm a cor sã de quem vive no campo.
Aos pés das Langhe, onde confluem
dois rios, 300 m acima do nível do mar,
outrora, paragem de viajantes
e de peregrinos,
na antiga rota do sal
que unia Albenga e Alba.
Vivemos numa grande quinta.
De dia, os miúdos brincam descalços
na erva e saltam de alegria,
de noite, cantam os grilos.
Andrea é herdeiro duma família rica,
donos de um prédio na cidade
e de uma bela moradia em San Remo.
A sua família é conhecida na aldeia,
faz muitos donativos para a igreja
e, aos domingos, Andrea assiste à missa
no banco da primeira fila,
que tem escrito o nome de família.
Em jovem, teve tempo para viajar,
mas, em vez de casar
com uma rapariga da aldeia,
uma rapariga habituada
à vida no campo,
escolheu-me a mim,
uma rapariga de Turim,
estrangeira para os de Cuneo,
delgada e loira, como outras
que conhecera pelo mundo.
Infelizmente, a nossa bela história
acaba aqui.
O meu marido não tem
as virtudes morais do Rei Artur,
quando voltou à sua aldeia,
estava mudado.
Talvez pela cultura da aldeia, machista,
talvez pelos amigos do bar,
para eles as mulheres não contam,
são feitas para os servirem,
O certo é que Andrea ficou violento,
bate-me há 12 anos.
Também é violento com os nossos filhos.
Mas não há nenhum Lancelote
que nos possa salvar,
a nossa situação não é uma situação
degradada, como em certos subúrbios,
pelo contrário.
Andrea é médico-chefe, ganha bem.
Claro que comigo não é generoso,
dá-me só alguns euros
e de noite, exige
os recibos do merceeiro.
Paga o talho no fim do mês
mas, no geral, o dinheiro não falta.
A noite passada, Andrea
começou-me aos pontapés.
Eu estava muito cansada,
não suportei a dor e gritei.
A nossa filha acordou
sobressaltada e assomou à escada,
viu-me estendida no chão,
enquanto o pai me batia.
No dia seguinte, na escola,
desatou a chorar.
A professora abraçou-a,
pediu-lhe que contasse tudo.
Foi uma surpresa.
Conhece Andrea desde sempre.
Nunca podia imaginar
que era violento.
Mas as crianças não mentem.
A professora chamou-me,
disse-me que ia falar com ele.
Pedi-lhe que não o fizesse,
ele era capaz de nos matar,
a mim e à minha filha.
Por agora, não me atrevo a revoltar-me,
não posso deixar esta bela casa,
para me mudar com os meus quatro filhos
para um pequeno apartamento.
Além disso, o meu marido é católico,
não quer separar-se.
Os meus pais também são
católicos praticantes.
Vivem na cidade,
não os vejo muitas vezes.
A minha mãe desconfia
de alguma coisa
mas não quero entristecê-la
com os meus problemas.
Sei que não gostaria
de ter uma filha divorciada.
Na realidade, não quero deixar Andrea,
não quero ir à polícia,
como me aconselha uma colega de estudos,
a única com quem mantenho contacto.
Seria como uma traição.
Talvez me engane,
tudo me parece tão estranho.
Quando o conheci,
Andrea era amável e ainda é.
Enche-me de pancada,
depois abraça-me, diz que me ama.
Acontece muitas vezes.
Se sangro, ele trata de mim,
não quer que eu vá às urgências,
ali todos o conhecem.
Com frequência, a família,
em vez de ser uma imagem de amor,
torna-se num lugar de tranquila crueldade.
Quando voltei a casa, noutro dia,
encontrei-me com a mãe de Andrea
que, em jovem, era violenta,
batia no marido, nos filhos,
Em casa não fala italiano,
usa o dialeto.
Nessa linguagem áspera, há uns dias,
incitou Andrea a bater-me.
Depois foi ela, a minha sogra,
que me expulsou de casa.
As crianças olhavam, atónitas.
Talvez porque aqui bois e pessoas
são todos da mesma raça.
Eu sou de Turim,
duma boa família burguesa.
Ela devia preferir uma rapariga daqui,
dessas que ficam em casa
e não dizem nada.
No domingo, fui confessar-me.
Don Paolo diz que eu tenho
de ter paciência, aguentar.
As pessoas que mais sofrem
são as que Deus mais ama, diz Jesus.
Não devo queixar-me,
a família é sagrada,
não se pode separar.
Claro que é difícil
permanecermos unidos,
se não houver respeito mútuo,
mas aqui não se trata só de respeito,
há violência e a violência mata o amor.
Depois de me bater,
Andrea vai confessar-se,
arrepende-se e o pároco
dá-lhe a absolvição.
Depois recai, bate-me de novo
e Don Paolo volta a perdoar.
É um pároco da aldeia.
A minha sogra oferece-lhe galinhas
e coelhos, como é a tradição.
Andrea quer dizer "homem".
Santo Padre, na vossa primeira
missa como Papa,
dissestes que o homem deve ser
o guardião de si mesmo e dos outros.
Andrea estava a ver a missa na TV
e bastou uma desculpa
para me bater de novo,
em frente dos nossos filhos.
Já é uma coisa normal,
até para mim.
Fico em silêncio, esgotada,
olhando fixamente para o meu marido.
Temos quatro filhos, mas aqui
as mulheres são como antigamente,
servem para ter filhos e nada mais.
Estou cheia de nódoas negras,
disfarço-as com maquilhagem.
Tenho de fazer qualquer coisa
pelos meus filhos.
O mais velho já começou
a levantar a mão.
Santo Padre, escutei-vos na rádio,
quando falastes das primeiras crentes,
Quero pedir ajuda.
Talvez uma só palavra vossa bastasse
para pôr fim a tanta violência,
uma violência disfarçada de amor,
ouvi dizer.
Mas talvez não servisse.
Que mais posso dizer
que ainda não tenha sido dito?
A não ser que vós, Santo Padre,
queirais falar com os párocos,
com aqueles como Don Paolo,
para não concederem com tanta facilidade
o perdão a homens como o meu marido.
Que a Igreja só perdoe, se sentir
que o arrependimento é sincero,
porque um arrependimento formal
serve para recuperar os sacramentos
e para voltar à violência.
É necessário demonstrar arrependimento,
ter intenção de mudar.
Se o arrependimento é fingido,
o pároco não pode nem deve absolver.
{Dois anos depois, 18 de abril de 2015]
Santo Padre, escrevi-vos há dois anos,
mas acabáveis de subir
à cadeira pontifical,
não era o momento apropriado.
Já o sabeis, chamo-me Ginevra,
sou de Piemonte,
como o vosso avô Giovanni
e o vosso bisavô Francesco.
Vivo em Turim, bela e antiga.
Quando a noite se enche de estrelas
há uma multidão de pessoas.
Turim é como Nápoles,
mas com montanhas.
Turim, com as suas ruas direitas,
é a outra cara da mesma Roma.
Turim, cidade doente de melancolia,
como canta Venditti,
Vivemos num condomínio
da Avenida Francia, em linha reta,
que vai da Plaza Statuto, porta Susa
até Chambéry, em França.
Assim o quis Vítor Amadeu II
de Saboia, em 1711.
Unia o Palácio Real
com a residência de Rivoli.
Durante a II Guerra Mundial,
quando a Itália entrou
em guerra com a França,
as autoridades locais mudaram-lhe
o nome para avenida Gabriele D'Annunzio.
Depois da guerra, voltou a ser
a Avenida Francia.
Hoje passa o metro por baixo dela,
nove estações.
No início da Avenida Francia,
há vivendas formosas
estilo Liberty, no início do século XX.
Nós vivemos um pouco mais adiante,
em Rivoli, nos arredores de Turim.
No meu condomínio, vivem empregados
que correm para o trabalho, de manhã cedo.
A casa onde vivo não é minha.
É a casa em que cresci,
é dos meus pais.
São velhos, deixaram-me
o apartamento mobilado
e mudaram-se para o campo.
Agora, deixai-me contar
como arranjei coragem
para ir à polícia
e fazer queixa de Andrea.
A princípio, não queria.
Francesca ainda estava na escola primária
quando o pai me deu uma sova
até me fazer cair.
Na manhã seguinte,
contou tudo à professora.
Preocupada, a docente
queria falar com Andrea.
Não estava bem que a criança
andasse a contar essas coisas.
Pedi-lhe que não dissesse nada,
podia matar-nos à pancada,
a mim e à minha filha.
Aí tomei uma decisão.
Pela Francesca.
Hoje está no 6.º ano.
Depois de falar com a professora,
fui à polícia e às urgências.
Viram as nódoas negras.
Não foi a pior sova,
já tinha estado muito pior.
Mas foi o suficiente
para apresentar a queixa.
Umas semanas depois,
fui a um gabinete legal, em Turim,
contratei um advogado
para o processo penal
e outro, para o processo civil.
Não pedi o patrocínio do estado,
queria alguém de confiança.
Gastei tudo o que tinha em advogados,
um sacrifício enorme.
Agora Andrea dá-me 500 euros por mês
por cada um dos nossos filhos.
Podia dar-me mais, é rico,
mas as propriedades são da mãe.
Não se importa que os filhos
não tenham as mesmas oportunidades.
Não se importa com o sacrifício que faço
para pagar as aulas de inglês, de violino.
As crianças mudaram de vida,
renunciaram a muitas coisas,
frequentam a escola pública,
mas não se queixam.
Nunca disseram que queriam
voltar à aldeia do pai.
Não estranham aquela residência antiga
com os tetos abobadados e com frescos,
o terraço, as belas arcadas.
Trabalho em "part-time", sou secretária
num museu, 900 euros por mês.
Tenho muitas despesas,
pago 500 euros de aluguer aos meus pais,
uma quantia simbólica.
São professores jubilados,
com problemas de saúde,
e eu não posso exigir mais.
Já nos ajudam muito
e não têm muito dinheiro.
São católicos praticantes.
A princípio custou-lhes,
mas por fim aceitaram
que tivesse deixado o meu marido
e tenha pedido o divórcio.
E pensar que, há dois anos,
me diziam para ser paciente,
que desse a outra face.
Os meus irmãos, em contrapartida,
negam-se a aceitar a minha decisão.
Vivem longe de Turim, vejo-os raramente.
Sei que me resta pouco tempo,
Santo Padre.
Vou contar-vos as reações
de Andrea e da sua família.
Quando me vim embora,
ele levou muito a mal.
Agora, arma-se em grande senhor,
atraiçoado na sua honra
e fazem-me passar por louca.
Durante a semana, trabalha
de bata branca, nas urgências,
ao sábado é voluntário na Cruz Verde
e, de vez em quando, ajuda os velhos.
Ao domingo, vai à missa.
Eu é que inventei tudo.
Fez queixa de mim. Tenho cinco
processos abertos em tribunais.
A minha sogra ainda reagiu pior,
uma fera, ferida no seu orgulho,
pensava que o silêncio os protegeria.
Para ela, sou uma bruxa, que devia
ser levada para um manicómio,
não entende como me atrevi
a levantar a cabeça,
renunciar à minha vida de senhora
para viver num apartamento
nos subúrbios, não remodelado.
Eu só levei o enxoval,
ele ficou com tudo o resto.
Alguns vestidos, joias não tinha,
ele nunca me ofereceu.
O colar de pérolas?
Um presente da minha mãe,
quando fiz 18 anos,
como é costume em Piemonte.
Nunca mais voltei à aldeia,
é território de Andrea.
Não posso entrar naquela casa,
nem sequer para ir buscar
as minhas coisas.
Saí a correr há dois anos,
foi em junho, a escola
estava a terminar.
Só consegui retirar os boletins das notas.
Uma noite em que Andrea
estava de serviço no hospital,
agarrei nas crianças e fomos para Turim,
80 km, no carro velho
que Andrea recuperou
depois de meses de litígio.
Na aldeia não temos amigos,
nem eu nem as crianças.
Estavam isolados, o pai não queria
que ninguém fosse lá a casa.
Não foi fácil, mas consegui,
conseguimos.
Santo Padre, não vos peço nada,
só queria contar
o que se passou, mais nada.
A missa? Vou todos os domingos
e também levo os meus filhos.
Estavam acostumados àquela
formosa igreja antiga.
Depois da missa, enquanto
os sinos tocavam,
saíamos para a praça
com vista para as Langhe.
Agora vamos à paróquia
do bairro, na Avenida Francia.
Não é o mesmo, mas tudo bem.
Contei a minha história a um sacerdote
que conheci, por acaso,
no comboio, e me marcou.
Chamava-se padre Carlo Caroglio,
dizia que não se deve
suportar a violência.
Era um pároco da cidade, moderno,
oriundo de Alexandria,
tinha vivido muito tempo em Novara.
Antes de ser pároco,
tinha estudado química, como vós.
Don Carlo não era como o pároco
da aldeia, o que ainda diz a Andrea:
"Não te sintas culpado
se a tua mulher te deixou.
"Uma mulher que te abandona
não te ama.
"É ela que se deve envergonhar,
não te merece".
Andrea batia-me,
depois ia ter com o pároco,
dizia que estava arrependido
e o pároco absolvia-o.
Por isso, Andrea sente que tem razão.
Vossa Santidade, não tenho
mais nada a dizer, o tempo escasseia.
Confio na vossa bondade e compreensão.
Só vos peço uma coisa,
fazei com que os párocos não absolvam
sempre e em qualquer caso
os homens violentos.
As minhas mais cordiais saudações,
Ginevra.
(Aplausos)