Desejo revelar as falhas
dos jornalistas de hoje.
Não vou falar de histórias, de intrigas,
de comentários sobre a vida privada,
ou de histórias de censura,
mesmo do "Fígaro",
porque acho que conhecem
essas coisas melhor do que eu.
Do que desejo falar
é das feridas que não se veem.
É das falhas do interior.
É sobre reportagens,
sobre os olhares que se fixam,
sobre a necessidade de nos isolarmos,
sobre as dificuldades em comunicar.
É a impossibilidade de exprimir
o que temos cá dentro.
E desejo falar-vos disso
porque, a 22 de fevereiro de 2012,
eu encontrava-me na Síria,
num centro de imprensa da cidade Baba Amr,
na Síria, em Homs.
A cidade foi bombardeada
de novo nessa altura
e, tal como hoje,
as bombas começaram
a visar-nos às 8:20 em ponto,
a aproximar-se de nós, incessantemente,
até matar Rémi Ochlik,
que era um ótimo fotógrafo,
talentoso, lindo como um anjo.
Até matar Marie Colvin,
que, para mim, era "A Heroína",
a grande repórter que já passara por tudo.
Até ferir gravemente Paul Conroy,
o fotógrafo dela.
Dois miraculados:
Javier Espinosa e Williams Daniels,
os fotógrafos com quem
eu tentava trabalhar
salvaram-se sem qualquer ferimento.
Quanto a mim, imensos estilhaços de obus
perfuraram-me uma perna, as coxas,
e reduziram-me o fémur a migalhas.
Conseguimos sair dali,
graças à coragem dos sírios,
graças à coragem de Williams Daniels.
Chegámos a França a 2 de março de 2012.
Passei semanas no hospital,
fechada, bloqueada
num hospital militar.
No que se refere a detenção,
eles são mesmo bons.
Tive sorte
porque havia lá médicos
que salvaram a minha perna.
Graças a eles, hoje estou aqui
de pé à vossa frente.
Também salvaram a minha cabeça,
porque me forçaram a falar.
- houve uma vez que adormeci,
mas não digam nada a ninguém.
Obrigaram-me a falar,
fizeram-me falar da morte,
fizeram-me falar do que é
ver um amigo morto,
fizeram-me falar do que eu tinha vivido
e isso ajudou-me imenso.
Ao princípio, eu não queria falar,
mas penso que isso me ajudou imenso.
Na minha profissão, não se fala nisso.
Na minha profissão,
não falamos destas feridas.
Na minha profissão, somos fortes
e partimos para a luta,
nunca estamos fatigados.
Estamos sujos, cheiramos mal,
mas partimos para a luta.
Então, vou fazer
um paralelo com o exército,
porque são as mesmas situações,
infelizmente demasiadas vezes.
Oficialmente há 15% dos soldados
que regressam de conflitos
traumatizados psicologicamente.
É muito, e são apenas os números oficiais,
quer dizer que há muitos
que se sentem mal interiormente
mas que nunca o dirão.
Todos os dias, há 18 veteranos americanos
que tentam pôr fim à vida
e que se suicidam.
É muito pior que o total oficial
dos combates no Afeganistão e no Iraque.
Gostava de vos dar números
sobre a minha profissão,
mas o grande silêncio
não é o exército, somos nós.
Nós não falamos disso, já o referi.
Há um psicólogo, um psiquiatra americano
que tentou trabalhar nisso,
que tentou interrogar jornalistas,
de guerra ou não,
e o número já é bastante terrível.
Há 28% da primeira categoria,
repórteres de guerra,
que sofrem do que se chama PTSD:
uma síndroma pós-traumática
— depois, vou voltar a isto —
e 24% que sofrem de grave depressão.
Então, o que é esse PTSD?
Costuma-se dizer PTSD, é o nome em inglês,
Não vou traduzir, porque é ridículo,
mas em português quer dizer,
síndroma pós-traumática,
SPT,
mas só os americanos trabalham nisso,
nós estamo-nos nas tintas,
isso não nos interessa, somos mais fortes.
Então, o que é?
Assim, aprendi de cor
a frase psicológica
— fiz três sessões de psicanálise,
tanto quanto me lembro.
O PTSD é uma reação psicológica
que surge na sequência de...
— ah, é isto que me está sempre a falhar —
... dum atentado físico ou psicológico
que aconteceu ou não,
que pôs em perigo a integridade
física ou psicológica do paciente.
Isso significa que são todas as coisas
que vemos, nas reportagens,
e que não devíamos ter visto.
Esses corpos mortos ao nosso lado.
Essas crianças que vão morrer
à fome dentro em breve.
Essas pessoas doentes,
essas pessoas queimadas,
essas mulheres violadas,
essas mulheres que os maridos
tentaram matar,
porque elas agarraram no telefone
e não deviam tê-lo feito,
ou por outras razões, frequentemente
igualmente obscuras.
É um conjunto de coisas
que, entre nós, ridicularizamos,
com um pouco de ironia,
escondendo o facto de que, cá dentro,
ficámos lixados por ouvir
todos esses relatos.
Continuamos como se nada fosse,
como se fôssemos mais fortes do que isso.
Continuamos a ouvir histórias atrozes,
durante todo o dia,
a ouvir bombas, a ouvir tiros e a avançar,
a tropeçar nessas histórias atrozes
durante todo o dia,
a fazer como se nada fosse.
Quero contar-vos a história de Lionel.
Lionel é um amigo meu do hospital.
Reparei imediatamente no Leonel
porque era o único que não tinha sido
amputado, não usava muletas,
nem cadeira de rodas.
O que era estranho num hospital militar
que só tinha soldados.
Perguntei-lhe o que é que ele tinha.
Com uma sinceridade e, ao mesmo tempo,
com a cara transtornada, disse-me:
"Eu ando nos malucos".
É muito bizarro, quando
um tipo de 2,20 metros,
com mãos do tamanho de coxas,
olha para nós e diz que anda nos malucos.
O Lionel é o meu herói.
É o tipo que todos vocês
adorariam ter ao jantar,
porque ele faz a geopolítica do mundo
e dos 20 anos passados, em cinco minutos.
Porque já viveu tudo.
Lionel é o Rambo.
Lionel esteve em Djibuti,
esteve na Somália,
esteve no Iraque, esteve no Ruanda.
É um livro de geopolítica,
para os professores, é genial.
Um dia Lionel estava no Afeganistão
e uma bomba explodiu mesmo ao lado dele.
Lionel teve sorte, salvou-se.
Não teve nem um arranhão.
Morreram muitos colegas
mas Lionel não sofreu nada.
Por isso ficou no terreno,
por isso continuou.
Mas, no regresso,
Lionel não estava nada bem.
De súbito, explodiu.
De súbito, era incapaz de sair de casa.
De súbito, sentia uma bola no estômago
e insultava os filhos e a mulher.
Mas não podia dizer-lhes o que tinha,
porque, por um lado, também não sabia
e, por outro, ele só fazia
operações secretas,
totalmente secretas,
e não podia contar-lhes o que tinha visto,
o que tinha vivido, o que tinha suportado
e o que tinha sofrido.
Lionel é um homem,
não refletiu muito, voltou
para o Afeganistão, dizendo:
"Vou curar o mal com o mal.
"Vou voltar para a guerra,
"De qualquer modo,
é a única coisa que sei fazer".
O que não é verdade, é só o que ele pensa.
Voltou para o Afeganistão,
passou lá mais sete anos,
a fazer a guerra, a ver as bombas a cair,
a ver os colegas morrer,
a ficar ferido, a ver as bombas a cair,
a ver os colegas morrer.
Depois regressou e apercebeu-se
de que as coisas não iam nada melhor.
E explodiu.
Encontrei-o no hospital militar de Percy
porque já não sofria de pesadelos.
Porque Lionel nunca dorme,
recusa-se a dormir porque,
quando dorme, tem pesadelos.
Porque já não tem vida.
Porque, como ele diz,
lá por dentro está morto.
Estamos a vê-lo, mas ele já não existe,
já não está no nosso mundo.
O problema é que Lionel não é o único.
No exército francês, atualmente,
sabemos que há outros.
No exército americano,
há muitos filmes a falar disso,
portanto sabemos que há outros.
E nos jornalistas também.
O problema é que nós,
tal como as feridas que não se veem,
temos dificuldade em diagnosticá-las.
Pensamos que é um pouco de fadiga,
pensamos que vai passar,
dizemos que devíamos ter visto,
que devíamos ter percebido.
O problema é que nunca se sabe
quando é que as coisas rebentam.
O problema é que podem rebentar
quando regressamos duma reportagem.
Mas basta uma fagulha,
um momento, um conflito com a mulher,
um conflito com o automóvel da frente,
para que as coisas estoirem.
Porque explodimos cá por dentro.
Vou falar-vos de mais um colega,
— eu tenho muitos heróis na profissão.
É fotógrafo,
também fez a cobertura
de todos os conflitos,
desde a Bósnia ao Ruanda, ao Kosovo,
ao Iraque.
Esteve em todo o lado,
é fotógrafo de guerra,
portanto viu tudo isso durante anos
Depois, em outubro passado,
foi assaltado.
É uma coisa vulgar,
talvez já vos tenha acontecido,
é sempre desagradável.
Mas, dessa vez, a violência entrou
no que ele tinha de mais íntimo,
na casa dele.
Já não era no terreno,
não tinha a máquina fotográfica
a escondê-lo.
Foi em casa dele, foi o cão dele
que foi ferido pelo assaltante,
foram as coisas dele
que foram remexidas,
foi a sua integridade pessoal
que foi violada.
A partir daí, tinha pesadelos,
a partir daí, não conseguia dormir,
nem estar só,
tinha sempre necessidade
de um amigo que o recebesse,
que o ajudasse, que o escutasse.
Depois, teve sorte,
está em vias de se recompor,
encontrou um psicanalista
para falar disso.
Conseguiu perceber o que se passava,
porque, a certa altura,
depois de ver muitas imagens,
pôs o dedo na imagem
que mais o tinha traumatizado.
Lembrou-se dos seus colegas mortos
no terreno na Bósnia.
— a coisa vinha de longe.
Lembrou-se daquela mulher
que estava morta na neve,
da sua incapacidade em ajudá-la,
em fazer fosse o que fosse.
Ficara ali, impotente, ao lado dela.
Julgava que isso pertencia ao passado,
mas, na verdade, estava lá escondido.
Tinha sido há 30 anos
que estivera ao lado dela
e nem sequer se apercebera disso.
De repente, os demónios libertam-se.
Ser jornalista de guerra
parece sempre a toda a gente
uma coisa muito estranha.
"Porque é que fazes isso?"
É preciso explicar-vos uma coisa,
é que eu não gosto da guerra,
não vejo filmes de guerra,
detesto a violência.
Não gosto nada do barulho e das balas,
detesto aquela espécie de "clique"
da espingarda quando destrava,
detesto ouvir as rajadas
a aproximarem-se de mim.
Ainda detesto mais
ouvir as bombas a aproximarem-se de mim,
é muito desagradável.
Detesto ser obrigada a baixar-me
e a não parar de correr
para fugir aos tiros,
sem ter tempo para
perceber o que se passa.
É preciso ter olhos na nuca,
porque temos que estar sempre vigilantes
do que se passa à nossa volta,
controlar, ter cuidado com tudo.
É fatigante, é uma tensão permanente
e, ao mesmo tempo,
uma espécie de adrenalina incrível.
Sentimos uma bola no estômago,
ficamos fartos, não aguentamos mais.
Ficamos com lágrimas nos olhos,
só temos vontade de regressar
mas, quando estamos em casa,
temos vontade de voltar a partir.
Depois, também há o prazer deste trabalho,
o prazer e o sentimento
de ter um trabalho interessante
e de contar histórias
que é preciso contar.
Mas também há aquela adrenalina,
não podemos iludir-nos.
O problema é que isso não acontece
só com os jornalistas de guerra
acontece com todo o tipo de jornalistas.
Infelizmente, somos confrontados
regularmente
com cenas a que não deveríamos assistir
e a coisas que não acontecem
no dia-a-dia de toda a gente.
Não é normal encontrarmo-nos
num campo de refugiados
com crianças de dois anos
que morrem em grande número.
Não é normal falar o dia inteiro
com mulheres violadas.
Não é normal falar com mulheres
que foram queimadas pelo marido.
É todo um conjunto de cenas
e de histórias que nos assombram
quando regressamos.
Tenho uma amiga
que é jornalista de cultura,
que frequenta um pouco a sociedade,
que às vezes vai a África.
O ano passado, por acaso,
encontrou-se na Líbia.
E, por acaso, em Trípoli,
encontrou-se no meio duma vala comum.
Há nisso uma coisa
ainda mais indescritível:
é o odor da morte.
É a visão de corpos em decomposição
de mulheres, homens e crianças
já há dias, semanas,
É o sentimento de recuo que temos.
Ela fez o seu trabalho,
fez as suas reportagens,
regressou, pensou que estava tudo bem,
que tinha gerido.
Mas não tinha gerido.
Meses depois,
acordou sobressaltada a meio da noite
incapaz de perceber
o que é que a tinha assustado.
Foi preciso escavar, foi preciso falar,
foi preciso tentar perceber
de onde vinham os seus demónios.
Os seus demónios vinham da Líbia.
Hoje já está melhor,
mas havia aquele diabinho que ia crescendo
na boca do estômago.
O problema é que
não conhecemos as palavras
para descrever tudo o que vivemos.
É preciso passar
por esses episódios atrozes
de pesadelos, de isolamento, de depressão,
para perceber o que temos
e para o ultrapassarmos.
O problema é que, hoje em dia,
os exércitos francês, americano, inglês,
têm o trabalho de envolver,
enquadrar e formar
as suas tropas para este tipo de coisas.
E o pessoal humanitário que encontramos
igualmente no terreno
faz o ponto da situação, no regresso,
para serem informados antes,
para avaliar a possibilidade de PTSD.
Mas nós, não fazemos nada,
nós gerimos.
Atualmente, como não quero
que haja mais Lionéis,
e como há muitos outros
camaradas que estão reféns...
- cujo colega foi morto,
que foram violados,
de que ainda não vos falei,
fica para outra vez -
como não quero mais Leonéis,
não quero que haja tudo isso,
estou a tentar montar uma estrutura.
Ainda não sei muito bem
que forma virá a ter,
para que, quando regressarmos
duma reportagem,
seja na redação seja independentemente,
assim como pomos de lado
o colete antibala e o capacete,
a nossa mala satélite,
— coisas em que não devemos
mexer muitas vezes —
a nossa mala satélite
e o nosso computador,
pomos de lado tudo o que temos,
o que vimos e não devíamos ter visto,
o que sentimos e não devíamos ter sentido,
todas essas emoções em demasia,
pomo-las no gabinete do psicanalista,
damos-lhas, para sair delas e avançar.
Mas ainda há muitas outras coisas a fazer,
há ainda muitas coisas a trabalhar,
Espero voltar ao TEDx na próxima vez
para vos apresentar a minha estrutura.
Obrigada.
(Aplausos)