Nasci no Brasil, em São Paulo,
em uma família muito pobre.
Toda a minha formação ocorreu
durante o governo militar.
Nunca pensei que poderia
estar aqui como artista plástico,
uma pessoa que fala de imagens.
Mas a minha realidade tinha
particularidades muito interessantes,
porque eu era pobre,
mas estava cercado de informação.
Tinha aspirações muito fortes.
E dentre essas aspirações,
entre o que eu imaginava e o que eu tinha,
existia um universo incrivelmente grande.
A realidade era o espaço que havia
entre o que eu tinha e o que eu queria.
Pensando bem: o que acontece agora,
nesta realidade que compartilhamos?
Ela é composta por dois tipos
de experiências muito distintas.
Uma é de origem perceptual
e tem a ver com os limites dos sentidos.
É a forma como reagimos
ao ambiente imediato.
Isso é muito pessoal, muito subjetivo,
porque não há uma pessoa que veja o mundo,
neste momento, como você.
Essa experiência começou hoje,
no exato momento em que você
abriu os olhos e começou a pensar.
Há outro tipo de experiência,
que existe fora do seu corpo,
fora deste teatro, fora desta ilha.
E tem a ver com a consciência
de uma unidade imaginária,
a consciência de mundo
como uma imagem enorme, massiva,
que muda o tempo todo.
Uma imagem de complexidade holográfica.
São duas experiências do mundo.
Essa unidade imaginária,
ao contrário da experiência pessoal,
não começou quando você
abriu os olhos hoje.
Ela começou há uns 50 mil anos,
quando um primo paleolítico nosso
começou a desenhar em cavernas
e transformar sons
em palavras que tinham sentido.
O artista está sempre trabalhando
com estes dois mundos:
o que está dentro e o que está fora.
Para mim, a ideia
de fazer arte, a própria arte,
é a evolução dessa interface
entre a mente e a matéria.
Posso dar um exemplo bem claro.
Quando as pessoas vão a um museu
ou a uma galeria de arte,
e eu observo muito as pessoas
que vêm ver minhas obras nos museus,
as pessoas invertem a ordem das coisas.
Você tem o controle e vai
na direção da imagem.
Tem o poder, tem a consciência.
Mas, mesmo com toda essa liberdade,
esse poder e consciência,
você para exatamente
como se houvesse uma linha no chão.
Todos param exatamente em frente à pintura
e se inclinam assim.
(Risos)
Isso é compreensível, primeiro
porque você para na posição exata
na qual o quadro cabe
dentro de seu campo visual.
Você pode pensar que está dentro
da paisagem pintada pelo artista.
É uma ideia, é algo da nossa mente.
E você volta ao lugar
da galeria onde estava.
E, nessa situação, você
se aproxima, e se afasta.
Com esse movimento, você compreende
que isso é uma imagem, é uma pintura,
é o produto da mente de uma pessoa.
Se a pintura for de uma paisagem real,
estaria olhando e desenhando,
e há um espaço entre
a paisagem real e a pintura.
Mas, quando nos afastamos,
vemos uma ideia.
Ao nos aproximarmos, vemos
o material, o que vem do chão,
coisas mundanas: pigmentos, óleos, fibras.
Quando nos afastamos,
voltamos a ver a imagem.
Há um momento mágico
em que uma coisa se transforma em outra,
em que a ideia se transforma em material.
O que é mente se transforma em matéria.
E, o mais interessante
em toda prática artística,
não é nem um lado nem o outro.
É exatamente o momento
em que uma coisa se transforma em outra.
É o momento transformador do encontro,
em que sabemos exatamente
que tocamos, com o mundo interior mental,
o mundo das coisas materiais
e das percepções,
que não tem nada a ver com o que pensamos,
esse mundo que não tem significados.
Dediquei mais de 30 anos
a pensar sobre o que poderia fazer
com essa coisa mágica
que é a representação.
Mas não podia fazer uma representação
que competisse com Spielberg,
com George Lucas.
Eles se enquadram no projeto
da representação mais real.
Eles trabalham com a verossimilhança.
Queria que minhas
representações fossem pobres.
Queria que fossem simples.
Queria que fossem a pior
representação possível.
Essa é uma medida da importância
da ilusão em nossa ideia de realidade.
As imagens que faço
sempre têm uma tensão
entre a percepção do material e da imagem;
entre o mental e o material.
Há uma ideia de tensão
que sempre tenta se resolver
e, ao mesmo tempo, se pergunta o que é.
Este é um garoto que fiz com açúcar.
Se eu o tivesse feito com sal ou cocaína,
este garoto se transformaria.
O significado muda.
Convivi com esses garotos
durante três semanas,
aqui perto, na ilha de São Cristóvão.
Soube pouco sobre eles
porque eu não sabia nadar.
Eu vivia em uma praia,
mas não sabia nadar.
E estava sempre com eles.
No último dia das férias, me convidaram
para tomar café da manhã com a família.
Esses parentes, ao contrário deles,
eram pessoas amargas, tristes, sombrias.
Ao voltar a Nova York comecei
a pensar o que teria sido tirado deles
para terem se tornado adultos tão tristes.
Era o açúcar.
Como os pais e as mães deles trabalhavam
por muitas horas colhendo cana-de-açúcar,
tinham tirado a doçura,
de forma concreta,
da existência dessas crianças.
Devo toda minha carreira
como artista a esses garotos.
E para mim é muito importante
que estas obras
estejam em museus como Tate, MoMA
e na Biblioteca de São Cristóvão,
onde esses garotos moravam.
Ao fazer coisas com açúcar,
também comecei a pensar
na diversidade de sensações
que se pode conseguir com a imagem.
A imagem pode inspirar o paladar.
A ideia de criar imagens que tivessem
relação com outros sentidos,
me pareceu interessante.
E comecei a fazer coisas com chocolate.
O chocolate é tanto uma invenção
industrial como cultural.
Dizem que é romântico, mas é marrom.
Não conheço nada
romântico que seja marrom.
Freud poderia dizer que isso
é o interessante sobre o chocolate.
Por isso, esse foi meu primeiro tema.
A ideia de estar em uma imagem
me parece justa.
E comecei a fazer desenhos com coisas.
E, quando estava desenhando,
tinha uma perspectiva
completamente distinta do desenho
que se formava na fotografia.
Estas são fotografias muito grandes.
Maiores que a imagem
que vocês estão vendo.
Foram feitas com brinquedos.
Os brinquedos são uma forma
de nos relacionarmos com o mundo
A ideia de que o mundo se transformou
em uma grande imagem
que não podemos ver é,
por si só, interessante também.
Há uns seis anos, comecei a negociar
com um grupo de pessoas no Brasil
para que me permitissem fazer
desenhos gigantes em minas de ferro.
Alguns desses desenhos
são maiores do que os de Nazca.
Medem quilômetros
e representam imagens tolas.
Queria que a ideia fosse o processo,
e não o que estava ali representado.
Estas são imagens enormes,
obtidas com um helicóptero.
Sempre mostro estas imagens
junto a imagens falsas.
Assim como as falsas fazem
as verdadeiras parecerem tolas,
as verdadeiras fazem
as falsas parecerem verdadeiras.
É você que decide.
Sempre trabalho com coisas
que as pessoas conhecem.
Com ícones, com arquétipos.
Com o que se espera das coisas.
Uma nuvem é algo que se espera
ver no céu, sempre,
mas nunca na forma de um desenho.
Com um avião, comecei a fazer desenhos
de nuvens no céu de Nova York.
Isso foi pouco antes
do acidente com as Torres.
Agora, se aparecer um aviãozinho
fazendo desenho no céu,
é abatido imediatamente pela Força Aérea.
(Risos)
Foi feito na hora certa.
Ainda que o desenho fosse de uma nuvem,
as pessoas diziam
que significava outra coisa.
O anterior, diziam que parecia
uma luva de beisebol.
Este aqui, em Miami,
em South Beach, é bastante "fálico",
concordo, mas não significava isso.
Quando as coisas têm uma dimensão
que não é ergonômica,
elas passam a integrar um imaginário
que ocorre apenas na mente.
Este é um de meus instrumentos.
Chama-se FIB: Focused Ion Beam.
Com este instrumento posso desenhar
em grãos de pó, grãos de areia,
coisas invisíveis.
São desenhos de castelos que fiz
com um instrumento do século 19
que se chama "câmera lúcida".
Assim como fiz esses desenhos,
também fiz padronagens,
que se parecem muito
com o papel de parede da vovó.
Mas, se olharem mais perto,
são desenhos feitos com células hepáticas.
Também faço isso
com células-tronco e com neurônios.
Achei que, se sabia fazer isso
com um tipo de célula,
com os outros seria igual, mas cada célula
tem um comportamento distinto.
As células cervicais,
por exemplo, têm cílios
e são muito difíceis de fotografar.
Assim como transmitimos informação
genética de geração em geração,
nos últimos 200 anos, transmitimos
informações pictóricas
que nos davam uma ideia
de quem eram nossos antepassados.
Com a ideia do álbum de fotos poderíamos
pensar como era nossa tataravó.
Como eu era muito pobre,
não tinha uma câmera fotográfica.
Uma tia, que vivia em Miami
e que vinha a São Paulo,
tirava uma foto e, um ano depois,
trazia essa foto.
Tenho oito fotos de quando eu era criança.
Quando me mudei para os Estados Unidos,
havia muita gente que vendia fotos.
Eu não sabia por quê.
E passei a comprá-las,
até quando não tinha dinheiro.
Depois de 25 anos, tenho 250 mil fotos
de gente que não conheço, que não conheci,
que não tenho a menor ideia de quem são.
Estas fotos são órfãs e existem no mundo,
e tenho a responsabilidade de resgatá-las.
Tenho um orfanato de fotos.
Mas essas fotos não ficam à mostra,
a não ser que estejam em um mural.
Aqui em Cuba vi uma menina
de 15 anos fazendo fotos
que vai guardar para toda a vida,
que vai dar para sua filha.
Todos os álbuns contêm
exatamente a mesma história.
A história de nossa vida.
Começam com o retrato do bebê.
Este sou eu com dois anos.
É uma das oito fotos.
Depois vem o retrato de escola.
O retrato do primeiro aniversário.
A foto do dia de Natal,
com a bicicleta de presente.
Estas fotos são feitas de pequenas fotos.
Não há nada nesta foto que seja original.
Todas são feitas de outras fotos.
É uma maneira de pensar essa coisa
fragmentada, que é a nossa vida pessoal,
em comparação com uma ideia mais pública,
mais universal, do que é uma vida.
Da mesma forma,
pensei muito em Paris hoje,
porque vivi em Paris durante muito tempo.
E as pessoas que vão a Paris
sempre pensam nela assim,
sempre com a torre Eiffel.
Mas a experiência de lugares
é muito diferente.
Estou há dois dias em Cuba.
É muito fragmentada.
O cartão-postal dá um aspecto genérico
da impressão, da experiência de um lugar.
Eu também coleciono cartões-postais.
Por isso pensei em fazer, com os postais,
algo similar à memória,
à percepção de um lugar.
E fazer isso com fragmentos
de outros postais.
Se imaginarem o Rio ou Miami,
represento o lugar
com fragmentos de impressões,
mas nunca será preciso, e cada pessoa tem
uma impressão diferente de cada lugar.
Esta é minha cidade:
São Paulo. Muito feia.
Como fazer uma imagem maior?
O mais importante é a experiência.
Para mim, faltava
a experiência de interação.
Sempre fui feliz e agradecido
por poder fazer um trabalho
que me dá tanto contato
com o mundo em que vivo.
Viajo muito, faço muitas coisas
e queria compartilhar
os processos de trabalho.
Eu não tenho interesse em fazer obras,
mas, sim, desenvolver processos
de trabalho com pessoas.
Porém não queria adicionar nada à equação.
Convidei pessoas que não tinham nenhuma
relação com a arte contemporânea,
nem de qualquer outro tipo,
para me ajudarem, durante um ano,
a fazer seus próprios retratos.
Lembrem-se que essas pessoas não
tinham nenhuma consciência de sua imagem,
exceto pelas imagens de telefones
celulares que encontravam no lixão.
Eram trabalhadores do lixão.
Fizemos seu retrato do mesmo lixo
com que eles trabalhavam o dia todo.
E foi um acontecimento transformador
tanto para eles como para mim.
Sempre que fiz trabalhos de cunho social,
e faço isso sempre que posso,
há mais de 15 anos,
também há este aspecto
do que é virtual e do que é material,
porque quando você trabalha
com pessoas pobres,
que passam necessidade,
tem que fazer algo material.
tem que trazer algo capital
para a vida deles.
É algo de alquimia, algo mágico
da arte contemporânea
poder transformar, através
dela, ideias em capital.
O resultado desse trabalho produziu
um documentário nomeado ao Oscar.
E com a venda dessas obras,
pudemos fazer muitas mudanças
nesse lixão que estava para ser fechado.
Este documentário se chama
"Lixo extraordinário", ou "Waste Land".
E também foi traduzido para o espanhol.
Esse foi meu estúdio durante três anos.
Estes trabalhos de interação
com as pessoas
são projetos que fiz para Rio+20.
Pedimos às pessoas
que assistiam à conferência,
que não pusessem
as garrafas de água no lixo.
Este é um trabalho contra a discriminação
de pessoas com AIDS, com HIV positivo.
Nos anos 80, muitos amigos
morreram de AIDS.
Como não havia informação,
esses amigos morreram
sem que eu pudesse dar-lhes um beijo.
Por isso, 15 anos mais tarde, fiz,
apenas com pessoas com HIV positivo,
uma figura de um beijo.
Este trabalho é da Bienal de Veneza,
para um protesto contra o fim
do projeto "Mare Nostrum",
que salvou mais de 140 vidas.
Era um projeto de resgate no Mediterrâneo.
Depois disso o substituíram
por um projeto de controle de fronteira.
Fiz isso para dizer às pessoas
que coisas ruins que poderiam
acontecer com essa mudança.
E uma semana antes de exibir esta obra
morreram 1,3 mil pessoas em 10 dias.
Agora estou tentando arrecadar dinheiro
para construir escolas
no norte da África e na Itália.
A ideia é que toda esta relação
entre percepção, cultura e informação
ocorre, em vários sentidos,
em grande parte
pelas ansiedades que temos como humanos.
Especialmente em um período
com tanta informação disponível.
Considerando o que aconteceu ontem,
na França, estou feliz de estar em Cuba,
porque parece que estou um pouco imune
à magnitude dos acontecimentos.
Penso que a educação,
que, na verdade, é o motor da cultura,
é a única possibilidade para que possamos
ter uma relação mais saudável
entre o mundo da informação
e o mundo da percepção.
E, pensando nisso, criei um projeto
chamado "Escola Vidigal"
em uma favela do Rio.
É um laboratório pedagógico
destinado a escutar as crianças
e desenvolver programas
com base no que elas querem,
e não apenas na postura de ensinar,
uma postura de liderança.
Termino aqui com uma imagem
muito bonita, a imagem de uma escola.
É o meu projeto principal agora.
Muito, muito obrigado.
(Aplausos)