Oi, gente. Então, quando as pessoas me perguntam de onde eu venho, geralmente a resposta causa espanto e às vezes vira motivo de piada. Como vocês escutaram, eu sou pesquisadora numa universidade canadense, mas eu fui para o Canadá da Finlândia, pra Finlândia eu fui da Nova Zelândia, pra Nova Zelândia eu fui da Irlanda, pra Irlanda eu fui da Inglaterra, mas eu nasci e fui criada aqui no Brasil. Eu me formei na [Universidade] Federal do Paraná, e ensinei no ensino médio, fui professora do ensino médio por oito anos, antes de sair do Brasil. Meu pai tem descendência germânica, minha mãe tem descendência indígena e meu filhos viajam com passaporte português. Então, essa história internacional acabou influenciando o meu objeto de pesquisa, que é a cidadania global. Eu estudo o imaginário da educação dentro da ideologia do desenvolvimento internacional. Então, pra dar pra vocês um pouquinho da ideia do que eu faço lá fora, eu vou começar com uma analogia. Eu vou pedir pra vocês imaginarem uma colheita de milho. Conseguem imaginar uma colheita na frente de vocês? Tem que ser milho descascado. Eu vou perguntar se o que vocês imaginaram parece com essa fotografia. Normalmente, as pessoas imaginam o milho amarelo. Esses milhos coloridos que estão ali são... Essa é uma foto que foi tirada no Peru. Esses milhos são verdadeiros. Mas eu uso a ideia do milho amarelo, que é o que geralmente o que as pessoas imaginam, como analogia pra nossa incapacidade de imaginar milhos de cores diferentes, e eu uso o milho amarelo também como metáfora pra falar sobre o conhecimento reproduzido na escolarização, nas escolas, que é uma forma de saber que não sabe que não sabe e que se imagina ilimitada, sem reconhecer os seus limites. Então, essa forma de saber que é reproduzida na escola produz uma história única, uma narrativa única de progresso, de desenvolvimento e de evolução da humanidade. Então, o meu trabalho em educação é fazer uma análise desse histórico e começar a pensar como a educação, como a escolarização pode ser imaginada de uma forma diferente. Eu me enfoco principalmente nas hierarquias criadas por essa forma de saber, que dividem a humanidade entre aqueles que lideram o desenvolvimento, o progresso e a evolução e aqueles que empacam o progresso, o desenvolvimento e a evolução da humanidade. Então, nessa imaginação da humanidade em dois campos, certas pessoas nascem e percebem que elas são seres humanos completos, normais e inteligentes, e outras acabam sendo percebidas e se percebem também como seres humanos incompletos, anormais e menos humanos, e menos inteligentes. Então, na educação, isso se repete, não só aqui no Brasil e na Inglaterra, onde eu trabalhei, mas em vários lugares do mundo inteiro. E o meu trabalho é então perceber como é que isso está sendo reproduzido e como é que isso pode ser pensado de uma forma diferente. No âmbito internacional, essa hierarquia de desenvolvimento se reproduz baseada no mito de que desenvolvimento é produzido a partir do conhecimento e da capacidade das pessoas. Então, esse mito faz com que a gente perceba quem nasce num país desenvolvido como mais inteligente, e quem nasce num país mais pobre como menos inteligente. Então, um país emergente como o Brasil é um país onde as pessoas "estão começando a ficar inteligentes", dentro dessa visão de mundo, e passam a ser ameaça àqueles que foram inteligentes até agora. Essa é uma produção sistêmica, quer dizer, quem nasce em país rico e em país pobre acredita na mesma coisa. Vou dar um exemplo pra vocês, mas, pra dar esse exemplo, eu preciso que vocês se engajem numa visualização comigo. Imaginem que vocês são alunos do ensino médio, numa escola europeia, e hoje o governo mandou pra vocês um questionário pra ser respondido por todos os alunos da sua cidade. É um questionário sobre desenvolvimento, e a primeira pergunta do questionário é a seguinte: "Por que o governo do seu país" - desse país europeu - "deve ajudar os países mais pobres?" E aqui estão as suas possibilidades de respostas, e você tem que marcar um X: "Porque se não ajudarmos,..." "as pessoas desses países vêm tirar nossos empregos e desequilibrar nossa economia"; "as pessoas desses países se envolvem em conflitos violentos e a gente acaba tendo que intervir"; "as pessoas desses países espalham doenças que nos afetam"; "as pessoas desses países vão continuar a destruir o meio ambiente, se a gente não intervir"; "ficaria mais perigoso tirar férias nesses países". Então, esse questionário foi usado na Inglaterra, de 1994 a 2007, e os alunos que respondem a esse questionário aprendem a associar a pobreza, ou os países mais pobres, com ignorância, violência, destruição, lixo, doenças e servidão, e, ao mesmo tempo, ao fazer isso com o outro, eles aprendem a se identificar com as características opostas, de inteligência, benevolência, merecimento, honestidade, limpeza e liderança. E essas características, num todo, acabam justificando a sua superioridade, o direito de intervenção, de tentar arrumar e ajudar o outro, como também a defesa do seu direito ao seu privilégio, que é, então, percebido como a segurança. Essa divisão justifica o direito de defender a segurança frente à ameaça que o outro representa. A superioridade depende de um outro que precisa ser percebido como inferior. Não tem como ter superioridade sem o outro que é inferior. E essas hierarquias se reproduzem não só na Inglaterra, não só na Europa, na América do Norte, como aqui também, em vários contextos, de formas extremamente semelhantes. E a minha parte de pesquisa em educação, então, é tentar perceber se isso pode ser modificado, como isso é reproduzido através da educação e como isso pode ser modificado. Eu vou dar um outro exemplo. Normalmente quando eu vou trabalhar com professores nesses países, em diversos países, não só na Europa e na América do Norte, mas também na América Latina, eu sempre faço uma dinâmica com os professores e peço pra eles me responderem como é que eles percebem os seus contextos sociais, como é que eles percebem a sociedade ideal e como se chega de A a B. Normalmente, quando eu pergunto sobre o contexto ideal, não só aqui na América Latina mas nos outros países também, a resposta é relacionada à violência, à pobreza, ao desemprego, abuso de drogas, desafeto e poluição e, mais e mais, a gente tem a depressão e a ansiedade dentro desse contexto. Quando eu pergunto sobre a sociedade ideal, a resposta normalmente se relaciona a paz, famílias felizes, etnias, nacionalidades de mãos dadas, campos verdes cheios de flores. E, quando eu pergunto como se passa de A a B, a resposta, invariavelmente, é a construção do conhecimento através da educação. Então, dentro dessa visão de mundo, se percebe o problema como a ignorância e o conhecimento como algo que vá abordar essa ignorância e levar a gente pra sociedade ideal, e é aí que o mito do milho amarelo aparece. A gente percebe que o milho amarelo acaba sendo a solução para os problemas que são causados pelo próprio milho amarelo. Então, é muito mais difícil perguntar que tipo de conhecimento leva a relações que causam os problemas que a gente identificou e como esse próprio conhecimento limita como a gente formula os problemas e como a gente pode imaginar as respostas. Em outras palavras, a gente acaba tentando responder, abordar os problemas que a gente tem usando o mesmo paradigma de conhecimento que gerou esses problemas. Portanto, as perguntas que a gente faz em educação, no meu grupo de pesquisa, por exemplo, se relacionam a que tipo de conhecimento pode nos levar a perceber o limite da forma de conhecimento que recebemos já nessa história. Será que a educação pode ser usada pra se pensar genuinamente diferente? Que tipo de educação pode nos ajudar a encarar a complexidade, a incerteza, a pluralidade, a desigualdade, de forma que a gente possa cometer erros novos e evitar os recorrentes? Então, em relação a... Ah, está aqui. A gente continua a buscar soluções do paradigma de conhecimento responsável pelos problemas que a gente quer resolver, e isso nos leva a repetir os mesmos erros disfarçados em linguagens e conteúdos diferentes. Então, à minha resposta às perguntas que eu coloquei, a minha resposta-tentativa, é de que não adianta enfocar naquilo que a gente não imagina como extensão do próprio conhecimento. A gente precisa enfocar naquilo que a gente não consegue imaginar, aquilo que a gente não sabe que a gente não sabe. E, pra isso, a gente precisa contemplar a beirada-limite do nosso conhecimento, e isso a escola moderna não ensina. Pra começar a contemplar a beirada-limite do nosso conhecimento, é necessário olhar pra produção do conhecimento em si e, pra começar essa conversa, eu normalmente uso a metáfora de um bolo. No topo do bolo está o que a gente fala, o que a gente pensa e o que a gente faz. A gente é levado a pensar que o que a gente fala, o que a gente pensa e o que a gente faz são coisas que estão interligadas e que são coerentes, mas não funciona bem assim. O que a gente fala, pensa e faz está ligado à nossa história única e pessoal, o que a gente aprende nas nossas famílias e nos nossos contextos; não só o que é consciente, mas também até inconsciente, nossos medos, nossos traumas e nossas paixões. Mas a nossa história única e pessoal não é só única e pessoal também. Ela está ligada na última camada do bolo, que são as referências coletivas sobre a realidade e sobre o conhecimento que a gente herda através da linguagem e através das nossas culturas, e através da nossa história. As escolhas feitas na base do bolo determinam o que vai acontecer nas camadas acima, do bolo, e são escolhas que determinam o que é desejável, as perguntas que podem ser feitas, como procurar as respostas, o que pode ser dito e o que pode ser negado. Como são escolhas, sempre existem as escolhas que não foram feitas, mas, se o nosso conhecimento se percebe como ilimitado e único, a gente vai ter mesmo dificuldade enorme em imaginar milhos de cores diferentes. Mas aqui, a questão não é substituir o milho amarelo pelo milho verde, pelo milho azul, milho rosa, ou por vários milhos, mas é perceber que cada milho tem seu histórico e que a diferença é absolutamente necessária para a nossa sobrevivência porque a gente precisa de formas diferentes de existir no planeta, principalmente quando a forma dominante pode não ser sustentável e levar à destruição. Então, dentro desse contexto, é importante perceber de onde veio esse milho amarelo e por que ele ficou dominante, como é que ele domina a nossa imaginação e, pra isso, é importante pensar no pensamento cartesiano, que faz as divisões entre mente e corpo, entre razão e emoção, cultura e natureza, que determina uma história de progresso e desenvolvimento baseada na ciência e na tecnologia, e que pensa na segurança como a busca da felicidade constante. Então, nesse contexto, é preciso problematizar a racionalidade totalizante que coloca o homem no centro do mundo, e que demanda soluções simples, empreendedoras, e que possam ser comunicadas em 15 minutos. Nesse contexto, pessoas escolarizadas como eu, se a gente foi educado e socializado no mito do milho amarelo, a gente tem uma dificuldade enorme de lidar com a complexidade, com a ambivalência, com a pluralidade, com o conflito, com a incerteza e com a desigualdade, e isso é porque o milho amarelo continua ditando uma narrativa única de progresso e desenvolvimento e de humanidade. Isso pode ser observado também no sonho brasileiro de se adquirir a vantagem competitiva nessa competição mundial de desenvolvimento econômico, a vontade nossa, o sonho, de passar de terceiro mundo pra primeiro mundo. Então, nossa vontade de jogar esse jogo é tão forte, que não sobra tempo pra gente ver que esse jogo, essa narrativa, não trouxe as soluções milagrosas para os países ditos desenvolvidos. Na verdade, é tempo de crises enormes nesses países, crises essas que são necessárias pra continuação dessa competição e que são baseadas no medo e na negação de outras possibilidades. Então, a gente vê a crise lá fora e continua acreditando, aqui no Brasil, na ilusão de que o desenvolvimento baseado no lucro e no consumo, na exploração e na extração, na competitividade e no individualismo vai trazer a felicidade e vai garantir um crescimento econômico constante. Também é interessante perceber que, quando a gente começa a levantar essas questões em educação, mais e mais existe resistência. Então, eu comparo isso com a questão da alimentação: se eu perguntar para os meus alunos se eles preferem algodão-doce ou brócolis cru sem sal, que é melhor pra saúde deles, eles vão preferir o algodão-doce. Se eu perguntar pra eles se eles preferem uma educação que confirme as suas certezas e que traga uma sensação de prazer ao confirmar essas certezas, ou uma educação que questione essas certezas e que abra mais possibilidades, mas que traga um desconforto inicial temporário, meus alunos hoje, tanto aqui quanto lá, estão preferindo o algodão-doce, o conforto, e isso é sinal de uma sociedade orientada ao narcisismo, o que, na minha opinião, é o maior desafio da educação hoje em dia. Então, eu volto para as perguntas pra concluir. Como se educar pra complexidade, incerteza, pluralidade, em um contexto de desigualdade, se a educação moderna vai na direção oposta? Como se educar pra que a gente possa aprender com os erros e limites do milho amarelo, sem jogá-lo fora? E como se educar pra criação de novas realidades onde os mesmos erros não sejam reproduzidos? Muito obrigada. (Aplausos)