O Cerco A democracia nas malhas do neoliberalismo Produção, realização, montagem Fotografia Som Mûsica Por ordem de aparição 1 . Introdução Nos anos 30, chamàvamos regimes totalitàrios aos regimes de partido ûnico, em que o objectivo do partido era o de controlar a totalidade das actividades de uma sociedade, tanto de ordem política, econômica, social ou cultural. O estado ocupava-se de tudo. Infelizmente, tivemos exemplos, sobretudo no caso do fascismo, nazismo e estalinismo, sociedades totalitàrias dirigidas por um partido. Hoje em dia vivemos em democracia, evidentemente, mas podemos constatar que o partido ûnico foi substituído pelo pensamento ûnico e que os detentores desse pensamento acreditam numa solução ûnica, a solução imposta pelo mercado, para todas as actividades da sociedade, tanto de ordem política, econômica, social, cultural como desportiva, competindo ao mercado regular essas actividades. O mercado tem penetrado em todos os interstícios da nossa sociedade, tal como um líquido que nada poupa. É por isso que podemos falar de regimes totalitàrios hoje em dia, pois existe uma vontade de impor uma solução ûnica à pluralidade dos nossos problemas. Escrevi “La Pensée Unique” numa altura, em 1995, em que a maior parte dos nossos concidadãos não se tinha apercebido de que estàvamos imersos numa nova ideologia. Esta ideologia a que agora chamamos “neoliberal”. O neoliberalismo é uma técnica econômica, um certo nûmero de princípios econômicos, mas também, sem que nos apercebamos disso, um autêntico jugo ideolôgico. E aquilo que eu queria realçar era precisamente isso, explicando aquilo em que consiste. Consiste em enumerar um certo nûmero de princípios, nomeadamente que o mercado, a mão invisível do mercado, regula a maioria dos problemas. O estado e os cidadãos escusam de se envolver, basta o mercado actuar. Estabelece princípios, tal como a desregulação. É preciso desregular, o estado estava demasiado presente. É preciso menos estado e que seja o capital a prevalecer sobre o trabalho. É preciso sempre favorecer o capital e privatizar, minimizando o raio de acção do estado e maximizando o da iniciativa privada. Urge favorecer as livres trocas, pois o comércio significa desenvolvimento - fazia-se uma equação deste tipo - e eu queria mostrar que aqueles princípios não surgiam do nada, jà tinham sido elaborados em 1944, apôs a Conferência de Bretton Woods, que deu início ao FMI e ao Banco Mundial. Foi esse o trabalho levado a cabo pelo FMI nos anos 60 e 70 em relação aos países do sul, o chamado “ajustamento estrutural”, a que certos países chamam “o Consenso de Washington”, ou seja, que é preciso a todo o custo reduzir o orçamento de estado, evitando o défice pûblico e a inflação, é preciso reduzir os funcionàrios pûblicos, tanto na saûde como na educação, pois o estado não deve incorrer nestas despesas. Muitos países do sul sofreram imenso com isso, evidentemente. Era isso que eu tentava explicar. Ao juntarmos todos estes elementos, estamos perante uma ideologia. Na altura, em França, estàvamos em vésperas de eleições presidenciais, que tiveram lugar uns meses depois, em Maio. Tal como eu estava a dizer, foi esta ideologia praticamente de partido ûnico que nos propuseram. Privatizações de esquerda Pouco apôs a queda da Cortina de Ferro, assiste-se no ocidente a uma viragem à direita da grande. maioria dos partidos de esquerda. Do Partido Trabalhista britânico ao SPD alemão e ao Parti Québécois, todos se aplicam numa “reforma”, “reengenharia” ou “modernização” do estado que se traduz invariavelmente pela adopção de políticas neoliberais. Em França, entre 1997 e 2002 o governo socialista de Lionel Jospin procede à privatização de cerca de dez grandes empresas nacionais, nûmero equivalente às dos governos de direita anteriores e posteriores. Mas como é que a ideologia neoliberal se impôs até nos partidos “socialistas”? E onde surgiu? 2. as origens Greve geral em Winnipeg, 1919 Ao surgir o neoliberalismo, impera uma configuração intelectual e institucional muito particular. Pode-se dizer que, entre 191 4 e 1945, o capitalismo atravessou uma crise sem precedentes. Tratou-se de uma crise no plano material. No anos 20, o capitalismo tinha recrudescido devido à reconstrução, mas a Depressão dos anos 30 traz desemprego, falências e distûrbios e, no plano intelectual, o credo liberal cede às exigências de planeamento econômico, dirigismo e desconfiança em relação ao “laissez-faire”. Houve uma exigência generalizada do reforço da intervenção estatal e da criação de uma economia dirigida, o que se traduz em medidas concretas nos países de estrutura “ditatorial” e nos países democràticos. Vem à ideia o plano soviético, a planificação quinquenal, mas também o New Deal, nos Estados Unidos, sob a égide da National Industry Recovery Administration ou de estruturas semelhantes. Na Alemanha nazi, foi o Ministério da Economia do Reich, na Itàlia fascista, o Ministério das Corporações. E até em França se instaurou um Ministério da Economia nacional, pela primeira vez, com a ascensão da Frente Popular. Manifestação comunista Berlim 1929 Um aspecto importante da instituição duma rede neoliberal em França foi a criação de uma editora. Tratava-se de Les Éditions de la Librairie de Médicis, fundada em 1937. Foi uma editora fundada por uma mulher, Marie-Thérése Génin, o que não era habitual num universo habitualmente masculino. Ela estava ligada a um dirigente de uma associação patronal, Marcel Bourgeois, que a incentiva a criar uma editora que divulgue textos de intelectuais destinados a um pûblico intelectual. E é publicada “La Cité Libre” [“The Good Society”], de Walter Lippmann, que serviu de pretexto à organização do Colôquio Lippmann, mas publicarà também Hayek, Rueff e Ludwig von Mises, quase quarenta textos, entre 1937 e 1940. É esta editora que irà publicar as actas do Colôquio Lippmann, realizado no Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, um organismo jà desaparecido mas que està na origem da UNESCO. Ou seja, tudo se passou num quadro relativamente oficial. O Colôquio contou com 26 participantes e, olhando para tràs, apercebemo-nos da importância dos participantes, entre os quais estava Friedrich Hayek, futuro Nobel da Economia, Robert Marjolin, um dos pilares da construção europeia, os fundadores da “economia social de mercado” na Alemanha, Alexander Rüstow e Wilhelm Röpke, o conselheiro financeiro do General de Gaulle, Jacques Rueff, e o proponente da Guerra das Estrelas de Reagan, Stefan Possony. Se bem que, na época, todos eles fossem menos conhecidos. O colôquio durou quatro dias, durante os quais houve debates acerca da responsabilidade do neoliberalismo na crise dos anos 30, tendo sido igualmente debatidos os meios de renovar o neoliberalismo e de criar uma oposição internacional ao intervencionismo e ao socialismo. O Colôquio Walter Lippmann constituiu a vanguarda do combate neoliberal em preparação. Entre os mais ferozes opositores do colectivismo, destacaram-se Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises. Hayek e von Mises representavam uma tendência do neoliberalismo, a chamada “escola austríaca”. Trata-se dum liberalismo radical. que dà ao estado um poder mínimo. “O estado minimalista” é a expressão usada pelos seus partidàrios. Eles tinham teorias econômicas ligeiramente diferentes,. Os liberais costumam acentuar as divergências, mas havia certos pontos em comum. Em primeiro lugar, a economia era apenas uma parte da sua obra. Von Mises considerava-a um ramo da ciência da acção humana. Hayek abandonou cedo as preocupações puramente econômicas para se interessar pela psicologia, e investigou o cérebro, interessou-se pela política, pelo direito... Para eles, a economia é a disciplina de origem, mas não abarca as ciências humanas. E ambos tinham uma concepção especial das ciências econômicas, a da escola austríaca, a de uma economia não totalmente concreta. Nada de estatísticas nem de dados matemàticos, tudo se desenvolve a partir de um axioma. Consideram-se situações ideias “típicas” ou vê-se como um indivíduo racional reagiria perante a negociação de escolhas entre o trabalho e o lazer, entre dormir e enriquecer, com metàforas do género Robinson Crusoé. O terceiro ponto em comum, necessàrio para compreender o neoliberalismo, é o conceito do trabalho intelectual e do seu papel face ao socialismo. Hayek e von Mises tinham um pensamento elitista e aristocràtico. Para eles, o grosso da humanidade não pensa. Em “Le Socialisme”, Mises afirma: “O grosso da humanidade não pensa.” Sô pensa uma minoria de intelectuais, e fà-lo pelo resto da sociedade. A ideia dele era que os intelectuais pudessem pensar, e vão-se opor ao socialismo, inventado por outros intelectuais e difundido pelo povo, jà que o povo não é socialista. lsso foi uma ideia que os intelectuais lhe meteram na cabeça. Ou seja, colocam os intelectuais no fulcro das transformações sociais, políticas e econômicas. E isto deu origem a organizações como a Sociedade do Monte Peregrino. A guerra põe temporariamente termo à militância dos neoliberais. O Centro Internacional de Estudos para a Renovação do Liberalismo, criado apôs o Colôquio Lippmann, desaparece apôs um ano de existência. Mas mal termina a guerra, von Hayek envida novos esforços. Convoca diversos proponentes do restabelecimento do neoliberalismo para uma reunião determinante para o futuro do movimento. A reunião do Monte Peregrino teve lugar de 1 a 10 de Abril de 1947, no Hôtel du Parc, perto de Vevey, na Suíça, com o objectivo explícito de reunir os intelectuais liberais europeus e americanos e de fundar uma organização para a promoção das ideias liberais. Hayek tinha começado a estabelecer contactos dois anos antes com os participantes no Colôquio Lippmann, britânicos e americanos, e convida-os para uma reunião em Monte Peregrino, que virà a dar o nome à sociedade. Houve 39 participantes nessa primeira reunião. Tal como no Colôquio Lippmann, algumas personalidades importantes. Três futuros prémios Nobel da economia, Milton Friedman, George Stigler e Maurice Allais. Outros eram conhecidos pelos seus ensaios políticos ou filosôficos, nomeadamente Karl Popper e Bertrand de Jouvenel, e outros ainda exerciam influência sobre a política do seu país, tal como os alemães Wilhelm Röpke e Walter Eucken, ligados à chamada “economia social de mercado”, na Alemanha. Debatiam-se temas relativamente gerais, do género cristianismo e liberalismo, a concorrência, a possibilidade de criar uma federação econômica europeia, ao longo de vàrios dias. Para Hayek, era necessàrio haver uma estrutura flexível em que os membros estavam là apenas por convite, sem sede, com estatutos no Illinois, que se reunia de dois em dois anos em países diferentes. Era uma estrutura bastante imaterial, que ia de encontro aos intelectuais que encaravam o liberalismo como uma doutrina para intelectuais. 3. No seio da rede neoliberal Os “think tanks” A Sociedade do Monte Peregrino não é um “think tank”, é uma espécie de academia para os liberais. Instaurou-se uma divisão de trabalho entre esta organização, que recruta apenas os liberais mais conceituados, e as actividades nacionais dos membros, que podem incluir a organização de associações, de “think tanks”. lsso pode tomar formas diferentes. Em França, por exemplo, surgiu a Associação para a Liberdade Econômica e o Progresso Social, nos anos 60, que é a secção francesa do Monte Peregrino, à qual se juntaram membros recrutados entre o patronato e a política, o que vai abranger outros meios para além do dos intelectuais. O modelo de criação de “think tanks” sempre existiu na histôria do Monte Peregrino. Entre os mais conhecidos, contam-se o Institute of Economic Affairs, surgido em 1955 na Grã-Bretanha, ou a Heritage Foundation, criada em 1973 nos EUA e ligada ao Partido Republicano. Estes “think tanks” contratam um certo nûmero de membros, pagos para redigir documentos, projectos-lei jà quase prontos para distribuir a políticos e jornalistas, com o objectivo de criar uma opinião pûblica liberal. Actualmente, hà centenas desses “think tanks”, que constituem um emaranhado donde é difícil a pessoa orientar-se, a ponto de alguns, tal como a Atlas Foundation, terem como objectivo promover os “think tanks” e ensinar a formar um “think tank”. Tomam vàrias formas. Certos grupos congregam-se à volta de um autor, como o Hayek Center ou o Mises Institute, que giram à volta da obra de um autor específico, mas outros concentram-se numa ûnica questão, tal como o meio ambiente ou a política estrangeira. Estamos perante “think tanks” com uma qualidade e influência variàveis, e aquilo que os fortalece é conseguir captar os intelectuais, uma parte do patronato e uma tendência nos partidos conservadores. Se pensarmos no Center for Policy Studies, de Keith Joseph, que promoveu Margaret Thatcher e lhe permitiu obter apoio para revolucionar os Conservadores nos anos 70, trata-se de uma organização na junção de três frentes. Um “think tank” sô de intelectuais interessados no liberalismo pouca influência concreta exerceria nos debates políticos. Uma parte da carreira de von Mises e Hayek explica-se pelas afinidades com os dirigentes das associações patronais. Von Mises, nos EUA, estava associado à Foundation for Economic Education e, através disso, às associações patronais. Ao chegar a Chicago, Hayek é financiado por empresàrios americanos para escrever “O Caminho para a Servidão”, mas sobre a América, não sô sobre a Inglaterra. De certo modo, esses intelectuais adquiriram mais poder ao associarem-se a indivíduos poderosos. A obra de Hayek pode ter um caràcter utôpico, mas é a utopia dos mais fortes, não dos mais desfavorecidos. Financiados pelos consôrcios e pelas grandes fortunas particulares, os “think tanks” neoliberais costumam gozar do estatuto de organizações de beneficência. Assim, os generosos doadores têm direito a isenções fiscais. No entanto, segundo a lei, as organizações de beneficência não podem dedicar-se a actividades políticas. Em 1989, foi retirado ao Greenpeace esse estatuto por ordem do governo canadiano. O fisco canadiano concluiu que a ONG nem sempre agia no interesse do pûblico, contribuindo para “mergulhar as pessoas na pobreza,” “ao reclamar o encerramento de indûstrias poluentes.” No entanto, nenhum “think tank” neoliberal gozando do estatuto de organização de beneficência foi importunado. Ao entregarem a sua declaração anual ao governo canadiano, estes institutos de pesquisa “apartidàrios” afirmam solenemente “não tentar influenciar a opinião pûblica” “nem tentar obter a alteração de leis ou políticas.” Sempre houve “think tanks” de direita, evidentemente, mas surgiram em força no início dos anos 1970. Fizeram parte duma reacção ao activismo dos anos 1960, que pôs em pânico as elites de todos os quadrantes. Tratava-se da democratização da sociedade, e todos eles desprezam a democracia, claro. A formulação mais explícita das ideias do internacionalismo liberal foi um estudo muito importante da Comissão Trilateral, os internacionalistas liberais na Europa, EUA e Japão, três grandes países. É de 197 4, penso eu. Intitulava-se “A Crise da Democracia” e era sobre o facto de os países estarem excessivamente democràticos. Segundo eles, havia um “excesso de democracia”. As pessoas que normalmente se mostravam passivas e apàticas estavam a mobilizar-se e a exigir os seus direitos. Chamavam-lhes “os interesses especiais”. As mulheres e os jovens, os velhos e agricultores e trabalhadores... O país em peso. Sô hà um grupo que não se encaixa nestes “interesses especiais”, o empresarial, porque a esse compete-lhe dirigir o mundo e o país, portanto não são um “interesse especial”, mas sim “nacional”. Mas a população em geral estava demasiado mobilizada. Por um lado eram os estudantes, a defesa dos direitos das mulheres, preocupações ambientais... Foi um período com um forte efeito civilizador na sociedade. Mudou muita coisa, e isso causou grandes receios. E houve uma enorme reacção a isso. A Comissão Trilateral pediu mais moderação na democracia. “O estado està a ser pressionado para satisfazer as exigências.” Apelavam às “instituições para a indoutrinação da juventude”, eram muito francos - estavam a falar uns com os outros... “As instituições de indoutrinação da juventude deverão ser bastante mais severas.” “A imprensa està descontrolada.” O que é ridículo, mas “talvez o estado tenha de intervir para restringir a imprensa”. Eram as opiniões do quadrante internacionalista liberal na Europa, EUA e Japão, era a opinião reinante. Daí aquele tempo ser conhecido por “o período conturbado”. Inquietava assistir à maior democratização e ao activismo, e houve uma grande reacção em vàrias frentes. Uma delas foi o aumento de “think tanks” de direita, que alcançaram grande poder e proeminência, para tentar virar o espectro da discussão para a direita. E, simultaneamente, disparou o lobbying por parte das empresas para garantir o controlo sobre a legislação. “Como é que o mercado pode promover a escolha e a liberdade individual?” Seminàrio no Instituto Fraser sobre políticas pûblicas. Organização conjunta com o Instituto Econômico de Montreal. Sàbado, 10 de Fevereiro de 2001 . Com o patrocínio do Instituto Fraser do Québec. Quando concedemos poder coercivo, o monopôlio do poder coercivo, a uma agência a que chamamos “governo”, este tende a utilizà-lo de forma ignorante ou a recorrer ao abuso de poder, tendo esse poder tendência para aumentar. O que o Instituto Fraser tenta investigar e realçar é isto: quais deveriam ser os limites do governo e os limites das empresas privadas ou das trocas voluntàrias entre indivíduos? É essa divisão entre a coerção e a livre-vontade sobre a qual me irei pronunciar neste seminàrio. Irão também assistir a seminàrios de outros participantes que vieram aqui hoje. APRESETAÇAO. ... da Foundation for Economic Education, em Nova lorque. Na sua apresentação, “Saneado pelo Capitalismo”, este especialista sobre liberdade vai explicar como a subida do nível de vida nos permitiu o “luxo” de novas preocupações, tais como as questões ambientais globais. Sou o presidente da Foundation for Economic Education, situada a norte de Nova lorque. Foi fundada em 1946. Na altura, era a ûnica organização liberal proponente do livre mercado. Entretanto jà surgiram outras, mas nôs existimos desde 1946 e temos por objectivo apresentar as ideias e os ideais de uma sociedade liberal, descentralizada, governada basicamente pelas leis da propriedade privada e da limitação do estado. A questão, hoje, não era o facto de não haver poluição industrial, mas sim de a poluição causada pela indûstria capitalista, independentemente da gravidade que lhe atribuímos, essa poluição deveria ser comparada... a gravidade do problema actual deve comparar-se à vida antigamente, na era pré-industrial. E, pelos padrões actuais, a vida era altamente insalubre e perigosa, devido aos poluentes naturais com que os nossos antepassados pré-industriais lidavam no dia-a-dia. E que mataram muitos dos nossos antepassados. O sistema de mercado, o capitalismo, eliminou muitos destes perigos e mitigou as consequências de quase todos os outros. Ou seja, o que eu quis dizer não foi que não existe poluição, mas que a poluição actual devia ser comparada à do passado, ao contrapormos estas grandes tendências, capitalismo e não-capitalismo. Este seminàrio não é financiado pelo governo, mas por privados e é bom ver que hà quem patrocine aquilo que defende. Na minha opinião, hà demasiados serviços, nomeadamente a protecção ao desemprego, a saûde e a educação, que constituem um monopôlio, um monopôlio do governo, o ûnico prestador destes serviços. Porque não abrir as portas à concorrência? Poderíamos ter concorrência na produção dos serviços, e a nossa preocupação com os pobres traduzir-se-ia em subsídios para adquirirem estes serviços. Separar a produção, que eu gostaria de ver privatizada e concorrencial, do financiamento, que poderia ser, em parte, governamental. Não gosto de falar sô de mercado, pois ele não existe sem os estados. Todos os mercados precisam de regras, todos eles precisam de um certo nível de regulação, nem gosto de falar de liberdade como um valor isolado. Existe muita gente que não quer liberdade. Eu gostaria de ter a liberdade de escolher quem manda em mim e aquilo que tento... discutir nas minhas palestras é como poderemos ter um sistema de governo que nos permita escolher que tipo de representante e de restrições iremos escolher, pois todos temos de viver sob certas restrições, até os mais libertàrios. 4. breve antologia liberal o libertarianismo e a teoria da escolha pûblica “Le Québécois Libre, Editorial “O que Devem Fazer os Libertàrios?” O libertarianismo é o descendente da filosofia liberal clàssica, que dà primazia à liberdade individual e às suas consequências a nível econômico, político e de mercado. Um estatismo mínimo e o mínimo possível de coerção, o mínimo de regulação, deixando os indivíduos livres para agir e para estabelecer relações voluntàrias com outros indivíduos. No plano social, opõe-se às filosofias que impõem uma ordem social, religiosa ou cultural. Teoricamente, se os indivíduos são livres, dentro da protecção dos direitos de propriedade, podendo estabelecer relações com terceiros, isso leva à harmonia. Não é a anarquia do capitalismo selvagem, da concorrência selvagem, de maneira nenhuma. É permitir as relações pacíficas e voluntàrias entre indivíduos. “Neoliberal, Libertàrio ou Anarquista?” O libertarianismo descende do liberalismo clàssico, uma filosofia com base no século XVII e XVIII e que constituiu uma reacção às monarquias autoritàrias da época. O liberalismo argumentava: “Face ao poder do soberano, hà que aumentar a liberdade dos indivíduos.” lsso desenvolveu-se nos séculos seguintes e actualmente é uma filosofia assente no livre mercado, sô que os libertàrios, no século XIX, demarcam-se dos liberais, pois a palavra liberal mudou de sentido. Nos EUA, hoje em dia, um liberal é precisamente o inverso, é um social-democrata ou alguém de esquerda, mas a Europa mantém a tradição francesa, liberal ainda é liberal, mas devido à confusão, os liberais clàssicos americanos começaram a designar-se “libertàrios”, nos anos 20 ou 30, para se distinguirem dos “liberais”, e a filosofia libertariana é mais coerente e radical do que o liberalismo clàssico, no sentido da redução do estado à sua expressão mais simples. Certos libertàrios são até a favor da eliminação total do estado, preconizam até a privatização da defesa, segurança e justiça. “Redistribuir a Riqueza é lmoral.” Hoje em dia, numa sociedade em que o estado gasta... ... as despesas do estado representam 45 a 55% do PIB. O estado controla certos sectores, como a educação e a saûde, controla imensa coisa, regula muito do que não controla, subsidia quase toda a gente. Hà uma grande parte da população que vive apenas da redistribuição do dinheiro. São pessoas que não produzem bens que outros queiram comprar, mas que se limitam a receber dinheiro confiscado a outros contribuintes. Ou seja, hà imensa gente que vive pura e simplesmente à custa dos outros. Podemos dividir a sociedade em dois, duma perspectiva libertarianista. Os que produzem e os que vivem dos produtores, os parasitas. A expressão pode ser dura, mas é o que se passa. Sendo pela responsabilidade individual, não podemos aceitar isso. Quem vive à custa dos outros é absolutamente irresponsàvel. Não produz nada que interesse e vive graças à coerção do estado, que transfere a riqueza. Se quisermos promover a liberdade e a responsabilidade, não podemos aceitar esta dependência de grande parte da população. A teoria da escolha pûblica diz que a adopção de políticas governamentais não é motivada pelo interesse colectivo, mas sim pelos interesses particulares dos diferentes grupos sociais. Em 1986, James M. Buchanan, o iniciador desta teoria que denuncia a ineficàcia do estado e preconiza a limitação da despesa, recebeu o “prémio Nobel” da Economia. Ao contràrio do que se pensa aqui, no Québec existe uma cultura estatista de que não nos apercebemos, pois estamos de tal modo imbuídos nela que a consideramos natural, mas de facto é uma cultura estatista, que encara o estado, ingenuamente, como o instrumento para maximizar o bem comum. Ou seja, como se a inspiração... Mas essa visão é puramente... É uma visão perfeitamente angélica do estado, desligada da realidade. Porque acreditamos que os governos democràticos, jà de si uma vantagem, maximizariam o bem comum? Não fazem nada disso. Obedecem às regras do jogo pelo qual se regem. E quais são? É o processo eleitoral. É essa a sua virtude. O que implicarà isso? Em primeiro lugar, iremos assistir frequentemente à chamada ditadura da maioria. Como a grande regra do jogo político é a maioria, um governo que ganha as eleições vai privilegiar a maioria. Os rendimentos da maioria são baixos, relativamente à média, portanto os políticos terão como ûnico objectivo redistribuir a riqueza, favorecendo essa maioria. O objectivo não é o de maximizar a riqueza nem o crescimento, ser eficaz, isso não interessa ao governo. Em primeiro lugar, quer redistribuir a riqueza à maioria que o elegeu. É assim que podemos explicar os programas sociais universais, a predilecção que a maioria tem pelo monopôlio pûblico da saûde e da educação. Não se trata de compaixão nem a preocupação de partilhar a riqueza que inspira essa tomada de posição. A maioria quer fazer-se pagar pela minoria mais abastada. Do que se trata é disso. É pura mentira afirmar que é a compaixão que inspira isso, a saûde socializada e a educação pûblica, mas não é nada disso. Em segundo lugar, as pessoas, ou seja, a maioria, costumam ser apolíticas. Existe aquilo a que os economistas chamam “ignorância racional”. Seria um disparate todos nôs obtermos muita informação acerca das políticas seguidas, informarmo-nos acerca do impacto de todas essas políticas. Porque não podemos alterar nada. Somos um eleitor entre milhões e, informados ou não, votando bem ou mal, não alteramos o resultado. Devemos tentar minimizar o esforço para perceber as políticas, o que de facto acontece. As pessoas nem costumam saber o nome do seu prôprio deputado e seriam incapaz de designar, de explicar as consequências dessas políticas, pois isso seria moroso, e a contribuição para a realização desse objectivo seria zero. As pessoas são apàticas, não-politizadas não-participativas, porque não vale a pena. Mas isso abre o caminho a grupos estrategicamente colocados, os grupos de interesses, o que explica o seu domínio, pois uma organização como a CSN ou a Associação Industrial Canadiana pode dedicar-se à actividade política e à propaganda, à promoção dos seus interesses, pois têm jà um sistema montado, portanto as decisões políticas vão ser dominadas por pessoas em lugares estratégicos, os grupos organizados. “Todos os grandes governos do mundo, presentes e passados, não passaram de grupos de ladrões, associados com o objectivo de pilhar, conquistar e reduzir os seus compatriotas à escravatura. As suas leis, como eles lhes chamam, não representam senão os acordos que consideraram necessàrios para manter a sua organização e agir concertadamente para despojar e escravizar os outros e para garantir a cada um a sua parte dos despojos. Essas leis não constituem obrigações, tal como acontece com os acordos celebrados entre malfeitores, bandidos e piratas.” Lysander Spooner (“Lei Natural; ou A Ciência da Justiça”, 1882) Encarando os factos objectivamente, o estado é uma instituição coerciva. Sô pode operar impondo as coisas à força. Por exemplo, quando o estado tem um monopôlio, como a Hydro-Québec, se eu decidir produzir e vender electricidade, colocando-me à margem desse monopôlio, não se limitam a dar-me umas palmadinhas, prendem-me se eu insistir em fazer uma coisa que o estado me impede de fazer. O estado agride-me fisicamente se eu quiser oferecer um serviço que o estado prefere monopolizar, que os estadistas decidiram monopolizar. Aquilo que o estado faz quando nos rouba metade do ordenado... Peço desculpa, mas pediram-me a minha opinião. Roubam-me metade do ordenado. Podemos dizer que elegemos democraticamente quem decide, sô que a democracia é a organização “pacífica” do banditismo do estado. Eu não votei para me roubarem, mas muita gente tem interesse nisso, pois essa gente - como eu dizia hà pouco - vive à custa do estado e da metade que o estado me tira para a dar a essas pessoas. A verdadeira liberdade não é a democracia. Não sou anti-democrata no sentido de querer um estado autoritàrio. Pensa-se que quem afirma isto é a favor dum estado autoritàrio, mas eu defendo um estado tudo menos autoritàrio, a ponto de nem justificar as suas acções com base na democracia. Liberdade individual e democràtica são coisas diferentes. Ao darmos democraticamente o poder para nos imporem condições, isso contradiz a liberdade individual. Defendendo a liberdade individual, não queremos mais democracia, mais maneiras de partilharmos os recursos que foram roubados aos outros. Defendemos a diminuição dràstica do estado para aumentar a liberdade não de decidir em que raposa vamos votar, quem vai assaltar o galinheiro, mas o que fazer com o que lhe pertence. Os incentivos incorporados nas políticas sociais são nefastos, tanto para os pobres como para a população em geral. Vivemos numa economia social pûblica, paralelamente à economia capitalista, a economia de mercado, esta produtiva, a outra baseada no modelo da ex-URSS, que contém incentivos nefastos, recompensando as pessoas por não trabalharem, por não terem uma família estàvel. Ajudar as mães solteiras é uma maneira de incentivar os filhos fora do casamento. E recompensa-se a pobreza. É tão radical como isso. A pobreza obedece às mesmas regras: quanto mais se subsidia, mais hà, pois aumenta o gosto pela pobreza. Veja-se o que aconteceu no Ontàrio e nos EUA nos ûltimos cinco anos. Foram impostos limites de acesso aos subsídios de bem-estar social, e a população de pobres e dependentes diminuiu para metade em poucos anos, pois jà não havia dinheiro, as condições tinham mudado. Eram obrigados a trabalhar, ossem quais fossem os métodos, portanto hà maneiras de reinserir as pessoas na economia produtiva, em vez de as colocar em bairros sociais ou em ghettos, onde todos são pobres. Se lhes déssemos vales que lhes permitissem aceder à propriedade, em vez de subsidiarmos o desemprego, que é o que acontece, subsidiamos essas pessoas para que fiquem no desemprego. Quem não està desempregado não recebe subsídio. Podíamos criar fundos de poupança para o desemprego, em que as pessoas acumulassem protecções, ao abrigo do fisco, até mesmo subvencionados, caso caíssem no desemprego. Todos teriam o cuidado de não ficar desempregados, pois iriam comprometer esse fundo, portanto cada um beneficiaria da poupança do seu prôprio fundo. Vàrias boas ideias, mas as nossas políticas sociais visam criar uma indûstria da pobreza e da dependência, com a qual lucram os burocratas e os funcionàrios envolvidos e que suscita a dependência por parte da população, e o apoio político, sem qualquer efeito a longo prazo a nível do país. As políticas sociais não diminuíram a pobreza, é esse o diagnôstico final. “Como o Apoio Social Prejudica as Crianças” Verificamos que o aumento, ao longo da histôria e nos diversos países, das receitas da economia são o ûnico meio de ajudar os pobres. Temos dados rigorosos sobre esta matéria. A ûnica variàvel que afecta, que diminui a pobreza nos diversos países é o aumento da riqueza. As políticas sociais não servem para nada! Quem quiser ajudar os pobres ou os menos favorecidos deve privilegiar o crescimento, portanto, todos os que se opuserem à livre troca, em nome dos países pobres ou dos pobres de cada país, estão enganados. Os factos contradizem essas opções. A melhor ajuda é abrir o comércio, para aumentar os rendimentos. Estatisticamente, o rendimento dos pobre aumenta ao mesmo ritmo, ao aumentarem as receitas, portanto hà que abrir a economia ao exterior. Para além disso, para além das medidas susceptíveis de ajudar os pobres, não vejo qualquer fundamento para a redistribuição da riqueza. Os governos redistribuem muita riqueza em favor da classe média, pois é ela a maioria que determina as escolhas, mas isso não tem fundamento moral. A ûnica justiça social, se é que posso dizê-lo, é o respeito pelo direito à propriedade. Da perspectiva do libertarianismo, os bens pûblicos não existem. É uma invenção para justificar a intervenção do estado. De acordo com essa lôgica, hà sempre factores externos, como a poluição. Não podemos produzir sem fazer fumo, que vai cair no vizinho, ou sem provocar resíduos, que vão parar ao rio, mas isso acontece por não haver direitos de propriedade sobre a àgua. Os rios são pûblicos. Durante todo o século XIX, as empresas estavam autorizadas a poluir os rios, e isso fazia-se até hà pouco tempo, pois o estado controlava o rio, que era um recurso pûblico, estatal, e o estado permitia às empresas privadas poluir os rios. Mas se o rio tivesse sido privatizado e cada um dos proprietàrios tivesse sido consultado para saber se permitiria a uma firma escoar assim os seus resíduos, podemos ter a certeza que as coisas teriam corrido doutra maneira. Poderia ter acontecido a firma ter pago o verdadeiro preço dessa poluição, ter pago aos proprietàrios para poluir o rio. A alocação dos recursos teria sido muito diferente. Ter-se-ia certamente dado preferência a soluções alternativas para esses problemas. As firmas teriam investido em tecnologia para evitar a poluição ou teriam acordado poluir locais específicos, na propriedade de alguém que fosse pago por isso. Teria havido outra reorganização das prioridades de produção. Os bens pûblicos existem apenas porque o estado distorce a produção, nacionalizando certos bens ou nacionalizando o meio ambiente. 5. críticas Historicamente, o liberalismo representou um progresso, mas o liberalismo clàssico, defendido porAdam Smith, o fundador da economia política, e esse liberalismo pouca relação tem com o actual “liberalismo” da palavra “neoliberalismo”. Pouco tem a ver com o liberalismo clàssico. Historicamente, o liberalismo representou um progresso, pois foi uma forma de contestar o absolutismo real e de conceder direitos ao indivíduo. Entre eles, no liberalismo clàssico de Locke e Adam Smith, reconhecia-se o direitoà propriedade privada, o que era um progresso, mas não é absurdo pensar que até o anarquismo descende do liberalismo. O liberalismo primitivo era radical, e o pensadores “liberais” de hoje poriam os cabelos em pé a A. Smith, pois pouco ele reconheceria no “liberalismo” actual. Tomemos como exemplo a propriedade privada. Se resulta de interacções com origem em consôrcios transnacionais, no centro e no quadro do liberalismo clàssico, torna-se impensàvel. É errado pensar que tiranias privadas, como a GM ou a Bombardier, possam ter direitos, quer direitos de propriedade quer direitos superiores que transcendem o ser humano. Por outro lado, a questão dos direitos de propriedade é bicuda. É importante colocà-la, mas a resposta não é simples. Mas estou certo que, mesmo no quadro do liberalismo, não podemos colocar as pràticas correntes e os agentes que são, os conglomerados transnacionais, e os direitos que lhes são reconhecidos no âmbito do liberalismo clàssico. Terà de haver uma reflexão sobre os direitos de propriedade. A minha opinião coincide com a do anarquismo clàssico. A propriedade privada dos meios de produção parece-me uma aberração. Mas Proudhon tem razão no que toca à chamada “posse”. É salutar existirem direitos de propriedade, mas o pseudoliberalismo ou “neoliberalismo” actual é absurdo. lmaginemos que hoje em dia alguém pudesse apropriar-se pelos meios habituais de aquisição de propriedade... lmaginemos que eu me apropriava, pelos meios legais, de elementos essenciais à vida de toda a gente. Ou as pessoas morriam ou se vendiam a mim. Essa sociedade seria considerada justa pelo actual neoliberalismo. É absurdo. Não podemos responder nos termos simplistas que o mundo actual propõe, mas a questão é complicada. Não podemos privatizar os meios de produção, mas deve haver direito de posse daquilo que utilizamos. O termo neoliberalismo é muito curioso. Para jà, não é liberal, tal como jà vimos, nem novo. Foram as políticas neoliberais que criaram o Terceiro Mundo. Se recuarmos ao século XVIII, os centros da economia mundial eram a China e a Índia. E isso mudou. A diferença entre ricos e pobres não era grande, nada que se pareça com o que existe hoje. A Europa cresceu e desenvolveu-se. Primeiro Inglaterra, depois os EUA, Alemanha, Itàlia e por aí fora. Desenvolveram-se, violando aquilo a que agora chamamos princípios neoliberais. Estados fortes e intervenção directa na economia. A Índia, e mais tarde a China, foram aniquiladas. E o mesmo se passou com aquilo a que agora chamamos Terceiro Mundo. Como? Através da imposição orçada de princípios de mercado. lsto é do conhecimento geral. Se lermos historiadores da economia, tal como Paul Bairoch, ele afirma que o proteccionismo e a intervenção do estado criaram as sociedades ricas e desenvolvidas. Não lhe chama neoliberalismo, mas sim liberalização forçada, que deu origem ao Terceiro Mundo. E isto jà se sabia no século XVIII. Se pensarmos em Adam Smith, que todos veneram mas ninguém lê, se lermos Adam Smith, vemos que ele era inteligente. Toda a gente jà ouviu a expressão “mão invisível”. Pouca gente presta atenção à sua origem. Ele usa-a em “A Riqueza das Nações”, portanto é fàcil de encontrar. É uma crítica àquilo a que chamamos “neoliberalismo”. Ele chamou a atenção - interessava-lhe Inglaterra. “Em Inglaterra, suponhamos que comerciantes e produtores, que são os donos do país e decidem as políticas a tomar, suponhamos que decidissem investir no estrangeiro e fazer importações, por ser mais lucrativo.” Seria lucrativo para eles, mas prejudicial para Inglaterra. Por vàrios motivos, por apego à sua terra, pela segurança, fosse pelo que fosse, decidiriam não o fazer. Como que movidos por uma mão invisível, Inglaterra serà salva da desgraça do chamado “neoliberalismo”. A intuição estava certa, os argumentos estavam errados. David Ricardo, o outro economista famoso, disse quase o mesmo. Peguemos no exemplo dele. Portugal e Inglaterra, o exemplo clàssico. Se os capitalistas britânicos decidissem investir em Portugal, tanto no vinho como nos têxteis, segundo o exemplo dele, poderiam ter lucro - e isso deitaria por terra a teoria dele da vantagem comparativa - mas o povo de Inglaterra ficaria prejudicado. No entanto, ele afirma que eles não o fariam. Adianta vàrios motivos psicolôgicos, por gostarem da pàtria ou assim, mas a intuição dele estava certa. No século XVIII, as pessoas compreendiam isso e tudo correu como se esperava. A liberalização forçada tem sido extremamente prejudicial, e os países ricos e poderosos nunca a aceitariam para si prôprios. O comércio livre é um bom conceito e, tal como foi imaginado no séc. XVIII, tinha os seus méritos, pois é lôgico dizer que é preciso produzir melhor e mais barato e trocar com outros que façam o mesmo. Em vez de produzir vinho em Inglaterra, compra-se em Portugal. Os portugueses comprarão os lanifícios. Foi este o exemplo dado por Ricardo. Mas os grandes teôricos do séc. XVIII nunca imaginaram que o capital viesse a poder deslocar-se para onde quisesse e que uma firma americana ou britânica pudesse investir na China, aproveitando a repressão na China, que proíbe os sindicatos, mantendo os ordenados muito baixos e “externalizando” os custos ambientais, fazendo a sociedade e a Terra pagar, porque polui mas é mais barato. Em vez de ter uma “vantagem comparativa”, eu produzo vinho mais barato, eles produzem lanifícios baratos, essa vantagem torna-se absoluta, pois o meu capital pode deslocar-se para onde houver condições que lhe permitam mais lucros, e é isto que falseia o comércio e que faz com que as transnacionais queiram a maior liberdade possível para si prôprias, sô que a mão-de-obra não circula, a não ser no caso dos “nômadas contemporâneos”, pessoal altamente habilitado e abrangido por certos acordos. Esses teriam o direito de circular e de se radicarem onde quiserem, enquanto que o comum dos mortais não pode fazer isso. 1 7 de Dezembro de 1992. O presidente dos EUA, George H. W. Bush, assinou com o Canadà e o México o Acordo Norte-Americano do Comércio Livre (NAFTA). 1 4 anos mais tarde, a 26 de Outubro de 2006, o seu filho, G. W. Bush, promulgou a lei do “Muro de Segurança”. Esta lei autoriza a construção, na fronteira mexicana, de um muro duplo com 4,5 m de altura e 1 200 km de comprimento. Està equipado com as mais recentes tecnologias em matéria de vigilância: torres, câmaras, sensores terrestres, aviões telecomandados, etc. Ateoria das vantagens comparativas é a da especialização internacional e diz que as nações devem especializar-se segundo as suas vantagens comparativas. É puramente estàtica. lmaginemos peões numa caixa, mas não questionamos a forma da caixa. Irà evoluir com a configuração dos peões? É uma teoria puramente do momento. E porque é que não funciona? Porque o comércio internacional não é uma troca desinteressada, em que os indígenas simpàticos trocam com os bons conquistadores. As coisas nunca se passam assim. Os conquistadores chegam e matam toda a gente e, depois, vem o comércio numa segunda fase de pacificação. Mas no comércio internacional, que é a matriz do comércio... lsso é outra ideia pré-concebida. A troca não começa na aldeia, depois na vila, na região, no país, depois são as nações... lsso nunca se passou assim, antes pelo contràrio. O comércio internacional segue os militares, os predadores. Depois, hà um fenômeno de pacificação em direcção ao interior. A teoria da “mão invisível” é extraordinària. Parte do princípio que as pessoas são màs, portanto é bastante lûcida, pois baseia-se nesse pressuposto. As pessoas são egoístas, gananciosas, màs e sô pensam em si. Não gostam do colectivo. Não são solidàrias, são anti-sociais e sô pensam em si. Transformemos este defeito numa vantagem para a colectividade e a sociedade. Deixemo-los continuar assim, e disso nascerà a felicidade pûblica. É esta a ideia da mão invisível. Sempre que se intervém, que se tenta pôr ordem neste antagonismo de egoísmos, perturba-se o sistema, que piora. Uma grande tese revolucionària é a do efeito perverso, de Hirschmann. Quem é de direita, os reaccionàrios, sempre acusaram os esquerdistas de fazer mal, querendo fazer o bem. Querendo ajudar os pobres, criam-se mais pobres. A imagem mais extraordinària foi a do “The Economist”, apôs a cimeira de Seattle, que mostrou a fome no Terceiro Mundo, as crianças negras, afirmando: “Eis as vítimas do falhanço de Seattle”. Uma vergonha! Pior que os anûncios da Benetton, A ideia era “andaram a brincar, a reprimir a OMT.” “Criaram gente pobre, infeliz e com fome.” Enquanto que este sistema cria gente pobre, infeliz e com fome. A mão invisível diz “laissez faire”. Não hà nada a fazer. O homem é mau. Sô a maldade pode acabar com a maldade. Dois maus juntos equilibram-se. Basta deixar andar, “laissez faire”. Os economistas estudam a mão invisível desde 1776, portanto jà estudam este problema hà algum tempo. Para isso funcionar, as pessoas deveriam estar sozinhas, autônomas, não ter relações, não haver um colectivo, apenas a racionalidade, separada da dos outros, individual. O individualismo absoluto. É a primeira condição. A segunda condição seria haver uma informação perfeita. Teríamos de saber tudo o que se vai produzir nos séculos seguintes. Seria essa a segunda condição. Bolas, esqueci-me da terceira! Pois, informação perfeita e, terceira condição, não haver incertezas, uma tempestade que provoca uma avaria no Ariane no 25º voo e não no 3º. Não poderia haver acasos, portanto seriam precisas informações perfeitas acerca do futuro. Assim, a mão invisível talvez funcionasse, mas não é certo. O que é importante saber é que os grandes economistas liberais e os matemàticos mais prestigiados, os prémios Nobel demonstraram hà 25 anos que o teorema da mão invisível não funciona. É treta! Muita gente suspeitava disso. Keynes desconfiava hà muito tempo, pois achava que o equilíbrio não podia aplicar-se à economia. Estava-se perante o desequilíbrio, a economia era caôtica. Mas os economistas puros e duros, os liberais mais prestigiados, envoltos no prestígio da ciência, tal como Gérard Debreu, prémio Nobel, afirmaram hà 25 anos: O mercado não conduz ao equilíbrio nem é eficaz. Convém fixar estas duas coisas. O mercado não conduz ao equilíbrio, a oferta e a procura não funcionam, e os mercados não são eficazes, portanto, o “laissez faire” é a pior solução. Mas agradeço aos liberais por nos terem dito isso! Quem falar em mão “invisível”, “oferta e procura” e “equilíbrio” ou é um escroque, o que acontece frequentemente, ou não quer ver, que também acontece, é aquilo a que Sartre chamava um “sacana”, sabe mas cala-se, ou é incompetente, que também os hà. Supostamente, apoiam o comércio livre. mas o que significa isso? Para jà, um país como os EUA, e o mesmo se aplica à Europa, não pode participar em acordos de comércio livre meramente por uma questão de lôgica. Não aceitam mercados no seu país. Quem não aceita isso não pode participar nesses acordos. A economia norte-americana, que é o fulcro da economia apôs a Segunda Guerra, baseia-se significativamente num sector estatal dinâmico. Consideremos este Instituto, o MlT. O que é o MIT? Talvez seja o instituto técnico mais importante do mundo, mas é também um meio para canalizar fundos pûblicos para empresas privadas. Desenvolveu-se aqui a internet, computadores, outros aspectos da alta tecnologia, geralmente à custa do eràrio pûblico, que assumia os riscos. Fez-se isso sob a égide do Pentàgono, uma boa fachada para desenvolver a electrônica em alta tecnologia. E isso arrastou-se durante décadas. Os computadores e a internet estavam no sector pûblico hà 30 anos, antes de serem passados para as mãos das empresas privadas. E o mesmo se pode dizer de quase tudo o que vemos. A aviação comercial, por exemplo. Pesa muito nas exportações. É quase uma subsidiària da Força Aérea. É por isso que a Europa, os EUA, o Japão e outros países estão tão interessados em desenvolver aviões militares, pois isso repercute-se logo na aviação comercial, criando imenso turismo e por aí adiante. Basta pensarmos no comércio. Tudo se baseia em contentores. Qual é a sua origem? A marinha dos EUA. Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, John Stuart Mill e até Malthus, todos os clàssicos da criação do pensamento econômico incorporaram o pensamento social. Eram filôsofos sociais, mais do que “puros” economistas. Mas os neoclàssicos, a partir de Auguste e Léon Walras, pai e filho, entre meados e fins do século XIX, deram origem à chamada economia “científica” que dispensa todo e qualquer pensamento moral ou filosôfico, portanto elimina as preocupações dos clàssicos até surgir Karl Marx, que eram as seguintes: Quem faz dinheiro e porquê? Terà o direito de fazer tanto? lsso serà justo? Serà injusto? Serà bom ou mau para a comunidade? A economia tinha uma dimensão ética que foi eliminada pelo pensamento neoclàssico. O neoclassicismo abriu o caminho ao pensamento neoliberal. Depois, o neoliberalismo acrescentou uma dimensão científica. Somos uma ciência, portanto imitamos a física. “Vemos que o dinheiro vai daqui para ali.” “Contamos, observamos, classificamos.” “Mas não julgamos,” “pois a física, a mãe de todas as ciências, não julga.” A força da economia é o facto de ser uma verdade evidente, neutra. Um discurso neutro que não diz bem nem mal, que é científico, com toda a neutralidade da ciência e que se apresenta como normal. É evidente que é normal restringir os ordenados para evitar a inflação, é evidente que não pode haver inflação. Mesmo que isso tenha aumentado drasticamente as desigualdades e conduzido muita gente à miséria, que tenha aumentado a desigualdade entre norte e sul, criado uma casta de ricos que estão a passar para primeiro plano, erradicado o poder dos estados, minado a segurança social. Apesar de tudo isto, sô pode haver uma verdade evidente: “É contra a inflação, claro?” Analisando a verdade e a histôria, vemos que os raros momentos em que o capital esteve amordaçado, tal como nos gloriosos anos 30, foram períodos inflacionistas, em que os ordenados podiam aumentar, pois quem pedia um empréstimo para uma casa, graças à inflação, saldava a dívida mais rapidamente. Agora estamos na economia inversa, a dos ricos. Podemos perguntar “Querem que sejam os ricos a governar o mundo?” Mas preferimos dizer “É contra a inflação, claro?” Para impor a sua ideologia, os neoliberais elaboraram, ao longo dos anos, uma estratégia implacàvel de cerco ao pensamento. Esta estratégia resulta da acção de uma rede planetària de propaganda, intoxicação e indoutrinação, que sabe fazer ouvir a sua voz polimorfa em todas as tribunas. Em grande parte concebida nos “think tanks”, a propaganda neoliberal utiliza vàrias correias de transmissão. Uma das mais importantes foi a educação. 6. propaganda e indoutrinação 6. propaganda e indoutrinação educação A ideia de educação nacional surgiu no século XVIII. Apôs a Revolução Francesa e a criação dos estados-nação na Europa, surgiu a ideia de que um espaço pûblico democràtico pressupõe pessoas informadas acerca do que se passa no mundo e capazes de reflectir, discutir e tomar parte nas discussões políticas. Havia duas instituições para isso, capazes de garantir que os indivíduos se tornavam “cidadãos”. Era a educação, que tinha como uma das funções formar os cidadãos, preparà-los. Por outro lado, os “media”. Falaremos disso mais tarde. Quanto à educação, uma das suas missões, não que tenha sido bem realizada, era a de formar os cidadãos, habilità-los a tomar parte nos debates políticos e a pensar nas questões políticas para là dos seus prôprios interesses. lsso era o mais importante. Não o facto de reflectir sobre política nem de intervir em debates econômicos, sociais e políticos da minha perspectiva egoísta, mas duma perspectiva do bem comum, do interesse colectivo. A educação visava isso. Nas transformações ligadas ao “neoliberalismo” dos ûltimos 30 anos, as instituições dominantes viram que era importante apropriarem-se da educação. lsto serà verdade? Estarão a infiltrar-se no mundo da educação? Basta querer para perceber que isso é verdade. Do primeiro ciclo à universidade, dependendo do país. É diferente nos EUA, no Canadà inglês, no Québec e em França, depende da histôria dos diversos sistemas, mas nota-se uma infiltração das empresas, da indûstria privada na educação. Porquê? É simples. A educação é um mercado altamente rentàvel, logo torna-se interessante apropriarem-se desta actividade social e econômica. E isso permite-lhes apropriarem-se do cérebro das crianças. É tão bàsico como isso. Educar é apropriar-se do cérebro. E isso é extremamente grave, requer uma justificação vàlida, e não me parece que ela exista. Mas quando as empresas se infiltram na educação, visam apropriar-se do cérebro das crianças, tentam transformà-las, deixando a educação de ter como fim a cidadania, o bem comum, desviando-se para os interesses dos interesses privados, que se apropriaram dela. Não é o mesmo encarar o mundo do ponto de vista da cultura, do saber, da exteriorização ou do ponto de vista desta ou daquela empresa, mas este segundo elemento està sempre presente. A apropriação de um mercado, do cérebro das crianças e a preparação da mão-de-obra, é neste sentido que se caminha, perdendo-se as outras funções de preparação para a vida cívica, a abertura para o mundo, para o puro prazer da compreensão, para o conhecimento desinteressado, passando a escravizar-se ao mercado, preparando os indivíduos para as funções econômicas. A educação passarà a ser o prelûdio da vida mercantil, do emprego, o que é perturbador. De hà vinte anos para cà que se tem passado isto. Tem havido uma certa resistência, convém dizer. Este fenômeno anda par a par com uma certa resistência, felizmente. O Channel One é uma companhia americana, actualmente cotada na bolsa e que lançou um projecto em que vão a escolas sem dinheiro e dizem: “Vamos fornecer material, televisões e vídeos, e, em troca, passam vinte minutos por dia dos nossos programas educativos.” São programas que explicam as notícias às crianças. O interesse é ter uma clientela cativa. Durante “x” minutos por dia, propõem programas e, como se pode imaginar, transmitem publicidade. Hà uns minutos de publicidade dirigida, num contexto extremamente privilegiado, a esta clientela cativa. lsto està em força nos EUA. Aqui também jà tentaram implantar. A companhia canadiana era a Athéna. Tentaram durante vàrios anos, mas os conselhos directivos recusaram. Hà que dizer que o nosso financiamento dos serviços pûblicos não é o mesmo que nos EUA, mas isso representa mais um ataque à educação. E toma vàrias formas, dependendo dos países e as regiões. A Mobil tem programas sobre energia. Aprende-se a proteger o ambiente com a Mobil e nutrição com a Nutra Sweet. Não estou a inventar, a Nutra Sweet tem um programa para crianças. E aprendem-se as virtudes do NAFTA com a GM, e a protecção da floresta com firmas esponsàveis pela desflorestação. Esse modelo repercute-se da primària à universidade de tal modo que, um pouco na brincadeira, poderà haver departamentos de ecologia das universidades que justifiquem a poluição. É isso que é perturbador. É a perda de sentido de certas actividades intelectuais e humanas que isso implica. Quanto mais acreditamos na nossa eficàcia econômica, ou melhor, financeira, jà que se trata da multiplicação de dinheiro, menos sentido fazem as coisas. Farà sentido dizer que a General Motors, por exemplo, é eficiente por ter 24 biliões de dôlares de lucro na ûltima década, mas lançando para o desemprego trezentos mil trabalhadores? lsso farà sentido? Por um lado fala-se em eficiência, mas o que se quer dizer com isso? Diz-se que a economia americana é mais eficiente. Sê-lo-à em indicadores financeiros e de capital investido, mas nunca houve tantos americanos a viver abaixo do limiar da pobreza, em termos americanos, nem tanta gente sem acesso a cuidados de saûde. 40% da população praticamente não tem acesso à saûde. Nunca os EUA tiveram um nível de educação tão baixo. 50% dos americanos não conseguem localizar Inglaterra num mapa. É uma aberração, quando cada família tem 50 canais de televisão em casa. É a isto que eu chamo “falta de sentido”. Tornamo-nos cada vez mais eficazes a nível material, econômico e financeiro, mas a nível ecolôgico, social, político e humano perdemos valores e qualidade de vida. É isto que não faz sentido. Para falar disso, sô saindo completamente do discurso econômico dominante. Para que as coisas façam sentido, é preciso voltar à estaca zero, partir de Aristôteles, que jà dizia: “Atenção, não confundam a economia, que vem de “oikos” nomia, a casa e o governo da casa e da comunidade, com a crematística, “khrem atos”, a acumulação de dinheiro. E isso leva-nos à questão da educação. Hoje em dia, até que ponto se ensina Aristôteles? Quem o conhece, quem o lê? E quem diz Aristôteles diz Vítor Hugo, Sartre Arquimedes. Paradoxalmente, diz-se que estamos na economia do saber e do conhecimento, mas nunca educàmos nem ensinàmos tão pouco. No entanto, também nunca demos tanta importância às instituições de “formação e educação”. Vou elucidar a questão do paradoxo, da falta de sentido. Em todo o mundo, sobretudo na América do Norte, estamos a transformar instituições de educação em instituições de reprodução de “servidores” do sistema, uma espécie de bípedes pensantes sem mais preocupações senão a de manter este mercado livre e auto-regulado e de manter este sistema de produção e multiplicação do dinheiro. É a chamada “empregabilidade”, formar para o mercado de trabalho. É reformar a educação do primeiro ciclo até a universidade para formar pessoas com emprego no mercado de trabalho. E isso é horrível! Actualmente, Vítor Hugo encontraria emprego? Sôcrates encontraria emprego? Um Paul Verlaine ou um Rimbaud encontrariam emprego? Não! Portanto, não existiriam. Mas o que seria da humanidade sem Sôcrates, Aristôteles, Rimbaud, Verlaine ou Vítor Hugo? Seríamos animais! Com o pretexto de não ter empregabilidade, de não ter aceitação no mercado, jà não se formam poetas, gente da literatura, matemàticos puros, físicos teôricos. Sô formamos aquilo que a indûstria e a finança querem para alimentar a màquina de multiplicar dinheiro. E quem são estas pessoas com possibilidade de se empregarem? São aqueles que vejo nas universidades do mundo inteiro, ao mais alto nível, segundo ou terceiro ciclo, aquilo a que chamo os “tecnocratas”, formados para analisar problemas, e dizemos-lhes que são inteligentes porque resolvem problemas, enquanto que a inteligência não é nada disso. A inteligência é a formulação da problemas. Inteligente é quem os formula, quem os enuncia, quem os articula de forma a colocar uma questão. O que se debruça sobre um problema para procurar a solução, não é esse que é inteligente, mas é isso que nos fazem crer. Os tecnocratas dominam as técnicas de anàlise e càlculo e confundem pensar e reflectir com analisar e calcular. Tomam decisões sem consultar a alma, tal como despedir 60 000 pessoas num dia, duplicar o seu ordenado de um milhão e ainda dizerem que isso lhes custa. “Tomo decisões difíceis.” São não-humanos! Tomar decisões sem consultar a alma é como dizer “Não sou um ser humano.” Porque os deixamos tomar decisões que afectam seres humanos jà que eles dizem que não têm alma, que não são humanos? São estes os tecnocratas que formamos ao mais alto nível. No nível intermédio, estão os “técnicos produtores”. São eles que operam as màquinas, desde o computador à màquina que debita peças de plàstico, aço ou alumínio. Existem para que a mecanização da produção nunca falhe. E o ûnico conhecimento que se lhes exige é a lôgica das màquinas ao seu cuidado. Pede-se-lhes simplesmente que compreendam o que a màquina quer. Nem são eles que dominam a màquina ou que têm uma superioridade humana, por terem alma ou conhecimentos. É a màquina que diz “Se fores inteligente, muda o chip ou a carta.” Se não fizer isso depressa, não presta. E, a um nível inferior, quem é que formamos? Jà nem sequer formamos. 45% da mão-de-obra das multinacionais americanas é composta por analfabetos. E as multinacionais não querem alterar isso. Não querem minimamente que essas pessoas tenham formação, porque deixando de ser analfabetas começam a fazer perguntas, a ler os jornais, sindicalizam-se, põem-se a pensar. Tudo menos isso! Actualmente, sobretudo nos EUA, hà pessoas com o ensino secundàrio que são praticamente, numa proporção alucinante, que no Québec atinge os 25% e que nos EUA deve atingir nûmeros semelhantes, hà pessoas com o ensino secundàrio que são analfabetas. Mal sabem ler e escrever, mas têm o canudo. E obtiveram-no pura e simplesmente indo às aulas e ficando mais velhos. E isso agrada ao sistema. Existem, na base, bípedes quase descerebrados, a quem nem sequer ensinaram a pensar, porque para pensar é preciso ler. Tenho que ler Vítor Hugo, poemas, filôsofos e é assim que aprendo a pensar. Não consigo aprender sem saber manipular as palavras. Sem isso não consigo pensar. Posso tornar-me um excelente reprodutor do sistema, não pensando e defendendo o sistema. Hà operàrios que dizem - e isso jà me aconteceu em situações graves de despedimentos - quando lhes pergunto “E qual é a vossa opinião?” “É a lei do mercado, a competitividade.” “Temos de ser mais competitivos que os japoneses, senão...” Defendem o sistema que està a trucidà-los. Jà vimos que hà redes por onde as ideias circulam. No caso da educação, é um pouco a mesma coisa. Vamos procurar justificações ideolôgicas, teôricos, pessoas que reflectiram sobre a educação para a transformarem no sentido que vou descrever. Por outro lado, existem instituições transnacionais importantes onde se veicula o mesmo discurso e se incita os agentes, os governos, os professores a adoptar as pràticas conformes a estes ideais. E os grupos de pressão, os “think tanks”, fazem o mesmo. O caso da educação é emblemàtico, pois cruzam-se os três. O teôrico da educação mais influente dos ûltimos cinquenta anos não foi nenhum pedagogo, mas sim um economista. Provavelmente, o teôrico mais importante foi Gary Becker. Ainda dà aulas na Universidade de Chicago e a teoria dele explica-se em cinco minutos. É a teoria do capital humano. O ser humano e aquilo que ele sabe constituem um capital no qual é preciso investir e que é preciso avaliar do ponto de vista de rentabilidade econômica. Essa teoria do capital humano, que permite aplicar as ferramentas matemàticas da economia à educação, que passa a ser um capital, diferente mas contabilizàvel, esta teoria foi a mais influente dos ûltimos cinquenta anos. E exerceu a sua influência nos locais determinantes, de decisão, onde se influencia os estados e os ministros da Educação, onde se influencia quem vai tomar decisões sobre educação. O segundo a ditar os mecanismos que se querem impor agora foi Milton Friedman, o pai da economia monetarista , que propôs um sistema de vales, cupões de educação, em que a ideia era infiltrar os mecanismos do mercado na educação e promover a concorrência entre as escolas. Estas duas teorias da educação, nunca debatidas nas faculdades, são provavelmente as mais influentes dos ûltimos anos. São elas que circulam no FMI, na OCDE e no Banco Mundial, servindo para analisar os sistemas educativos e fazendo recomendações com base nisso. Os “think tanks” e os grandes grupos mediàticos têm frequentemente relações privilegiadas; a propaganda circula naturalmente dos primeiros para os segundos. Além disso, é graças a esta correia de transmissão mediàtica que a ideologia neoliberal atinge o seu estatuto de dado adquirido. 7. propaganda e indoutrinação 7. propaganda e indoutrinação os “media” Diz-se que foi Hitler quem inventou a propaganda e nos jornais costuma-se ler que Hitler, durante a Segunda Guerra, percebeu a importância da propaganda, da propaganda na sociedade. No entanto, ele não inventou isso. Aprendeu connosco, e refiro-me às democracias ocidentais. Aprendeu sobretudo com os ingleses e os americanos. Desde o surgimento das sociedades modernas, prevalecem duas tendências. “É necessàrio haver uma democracia participativa, { em que as pessoas saibam discutir o que se passa, agir e influenciar as decisões tomadas.” A outra perspectiva do mundo afirma que uma parte da população é dispensàvel. Hà que impedi-la de lidar com o que lhe diz respeito. Esta visão da sociedade, do mundo e da economia também existe na nossa cultura. Manifestou-se fortemente na Primeira Guerra, nos EUA. Nessa altura, o governo tinha sido eleito com base na promessa de não entrar na guerra. Pouco depois de ganhar, por razões de política interna e devido ao papel dos industriais nos EUA, o governo decidiu participar no conflito. E viu-se a braços com uma população oposta à entrada na guerra. Para resolver o problema, criaram uma comissão que tinha o nome do jornalista que a presidia, Mr Creel, a Comissão Creel. A comissão dedicou-se a inventar as técnicas modernas da propaganda, de formação da opinião, de preparação da opinião pûblica. Na Comissão Creel, que cumpriu exemplarmente a sua tarefa - alterou a opinião pûblica em poucos meses - trabalharam pessoas célebres e conhecidas, intelectuais de renome e também Edward Bernays, o fundador da indûstria moderna das relações pûblicas. Ao abandonarem a Comissão, criaram modos de comunicação no interior das sociedades que ainda hoje existem e que fazem parte dos mecanismos da propaganda. Tinham um objectivo político extremamente importante, o de excluir uma parte da população, de formar a opinião pûblica e de criar um consenso na sociedade. As instituições que eles inventaram - e jà falei das empresas de relações pûblicas, mas hà que mencionar também o papel das relações pûblicas dentro das empresas, da comunicação social, dos “media”, do papel dos intelectuais, do papel da publicidade e da informação na sociedade - Hitler lembrou-se desta lição, e com razão. Como surgiram os mecanismos que permitiram o actual pensamento ûnico? São os descendentes daquilo que descrevi, da Comissão Creel e, antes ainda, duma concepção de política segundo a qual, para a sociedade funcionar, deve excluir uma parte da população. E é isso que acontece. Mas apesar de esses agentes serem muito poderosos, fortes e numerosos, manifesta-se também um contra-discurso. Na nossa sociedade, existem locais onde se propõem outras anàlises, hà meios de comunicação alternativos, hà intelectuais, hà grupos sociais e grupos comunitàrios com novas ideias, ou seja, estamos perante um fenômeno duplo. Infelizmente, o pensamento ûnico existe e é o dominante, a propaganda existe e tem o papel que tem. É através destes mecanismos e instituições que se cria uma visão do mundo, um vocabulàrio e uma maneira de encarar o mundo que garantem que certas questões possam ser colocadas, enquanto que outras são excluídas. A actual ideologia dominante, a que eu chamo ideologia “ambiental”, cuja face oficial é o tal pensamento ûnico, e cuja face oficiosa é a linguagem dos “media” ou da conduta prescrita por eles, essa ideologia nunca surge como ideologia. É apresentada como qualquer coisa de natural, qualquer coisa de evidente. É evidente ter-se uma televisão. “Não ter televisão no século XX, ou no fim do século XX?” É evidente aceitar a publicidade. “Não me diga que, jà depois do ano 2000,” “vai pôr em causa a indûstria publicitària?” Tudo aquilo que é ideolôgico, que depende de uma escolha, organizado pelo sistema, que não nos pediu a opinião, nos é apresentado como sendo evidente, como sendo coisas que nem vale a pena discutir, o que é muito interessante. Jà agora, a propôsito do pensamento ûnico, que é uma maneira uniforme, parcial e sectària de interpretar a economia, ou de a praticar, Alain Minc dizia “Não é o pensamento que é ûnico, é a realidade.” A partir desse momento, jà nem vale a pena pôr em causa as actividades da economia liberal ou ultraliberal. lsso era um dado tão adquirido como a realidade, portanto era preciso seguir a realidade. Quanto à mundialização, dizem-nos “É a realidade”. Evidentemente, mas não é necessariamente uma boa realidade. Ou a ideologia diz “É a realidade, portanto é vàlida,” “é necessàrio caminhar nesse sentido.” A globalização, o mesmo. As privatizações, o mesmo. Como se faz, deve-se continuar, era preciso fazer. Apresenta-se como dados adquiridos aquilo que se quer que as pessoas aceitem, em vez de perguntar se concordam ou não. lsto vai de encontro ao que digo no meu livro acerca do sofismo do inelutàvel. A maioria dos políticos encobre os seus actos, as suas escolhas, pois são escolhas e decisões, sob o manto do inelutàvel. “Não podíamos fazer outra coisa.” Os americanos fazem isto. Toda a gente sabe que o se faz em França se fez dez anos antes nos EUA, portanto tinha de se fazer em França. A Renault fechou uma fàbrica na Bélgica para reestruturar e criar as mesmas fàbricas noutros locais, mas com gente a ganhar menos. Era a consequência de um estudo econômico. Ao encerrar-se a fàbrica, o chefe de estado francês declarou: “Infelizmente, as fàbricas encerram. É a vida. As àrvores nascem, vivem e morrem, as plantas, os animais, as pessoas e as empresas também.” É um bom exemplo de naturalização da situação, é uma despolitização. Assim, as pessoas são obrigadas a aceitar como sendo natural, como sendo independente da vontade dos políticos, certas decisões que, de facto, estão dependentes disso. Assim, é possível manipular os cidadãos e, em ûltima anàlise, dissuadi-los de acreditar no voto. Actualmente, o funcionamento dos “media” permite a criação da verdade. Como é evidente, a verdade sô consegue surgir do confronto, da verificação de uma determinada versão, confirmada por um certo nûmero de testemunhas. Bem sabemos até que ponto é difícil estabelecer a verdade. Hà os juízes de instrução, a polícia científica que analisa, que tenta descobrir a verdade. Mas actualmente, no funcionamento dos “media”, basta que, a propôsito de um acontecimento, todos os meios de comunicação afirmem o mesmo, que a imprensa, ràdio e televisão digam o mesmo, para que essa coisa se torne verdade, mesmo sendo falsa. Vimos isso na Guerra do Golfo e em importantes acontecimentos recentes. Ao estabelecer essa equação, que é falsa, evidentemente, a repetição serve de prova. Reli hà pouco tempo “Admiràvel Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e encontrei uma frase a propôsito da hipnopedia, a hipnose pela escuta a que sujeitavam os bebés à nascença para os convencerem a contentarem-se com aquilo que são, , e um dos directores do Centro de Condicionamento, é assim que se chama o centro, diz esta frase: “64 000 repetições fazem a verdade.” E nôs estamos nesse mundo de Huxley. Apoiadas por uma propaganda e um proselitismo incessantes, que transmitem continuamente através das mûltiplas vias de uma rede tentacular de controlo do espírito, as reformas neoliberais impõem-se gradualmente às consciências anestesiadas das democracias ocidentais. Nestes países, em nome dum “realismo” necessàrio, todos os partidos, de esquerda e direita, adoptam medidas que minam diariamente o estado social em benefício do mercado. No entanto, nos locais aonde a propaganda não chega, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento, impõem-se outras soluções. Soluções dràsticas. Pois sob a cortina de fumo ideolôgica, por detràs dos grandes conceitos de ordem espontânea e de harmonia de interesses num mercado livre, para là da panaceia da “mão invisível”, o que se esconde na realidade? Quais eram as verdadeiras motivações dos banqueiros e dos industriais que financiaram o estabelecimento da rede neoliberal? 8. neoliberalismo ou neocolonialismo? a capacidade de imposição dos mercados financeiros É impressionante ver como todos os elementos da conjuntura neoliberal estão concebidos especificamente para minar a democracia. lsso raramente é discutido, fala-se sô dos efeitos econômicos, mas basta pensar. Tomemos como exemplo a globalização financeira. Para Keynes, a grande conquista de Bretton Woods, do sistema do pôs-guerra, foi a regulação financeira. E hà um motivo para isso. Permite aos governos adoptar programas que têm o apoio da população. Não havendo limites à circulação do capital, é possível atacar as divisas, criando aquilo a que os economistas chamam “parlamento virtual”, com investidores e financiadores que podem criar “um referendo passo a passo” em termos de políticas governamentais. Se considerarem essas políticas irracionais, podem votar contra, retirando o capital ou atacando as divisas. As políticas irracionais são aquelas que beneficiam as pessoas, mas não aumentam o lucro nem melhoram o acesso ao mercado, daí os governos enfrentarem “dois constituintes”: a sua prôpria população e o parlamento virtual. E o parlamento virtual costuma ganhar, sobretudo nos países pobres. Nos ricos, jà não é bem assim. Não aceitaram o neoliberalismo tão completamente como na América Latina, mas, mesmo assim, os efeitos são previsíveis. E o mesmo se aplica a outros elementos do programa neoliberal. As privatizações, por exemplo, que se tornaram uma mantra. As privatizações prejudicam a democracia, retiram bens ao eràrio pûblico e colocam-nos nas mãos de tiranos privados que não prestam contas, criados e sustentados pelo estado, e é isso que são as grandes empresas. Antigamente, quase todas as operações bancàrias, até aos anos 70, eram controladas. Todas passavam pelo banco central francês, que as monitorizava. Agora, o problema é que os bancos fazem transacções sem controlo, Mais de metade dessas transacções saem do âmbito do controlo do mercado. É como se tivéssemos um mercado normal e, mesmo ao lado, um mercado negro. Numa mercearia, os preços estão afixados, no fim pagamos na caixa. Ao lado, no mercado negro, não sabemos o que se passa. Nos seus balanços, o Banco de França afirma, ao controlar o balanço dos bancos, que metade das transacções são feitas à margem do balanço, ou seja, totalmente fora do controlo de uma autoridade superior, seja do Tesouro ou de um banco central. Essas actividades reduzem o estado a zero. Deve haver uns quinhentos biliões de dôlares a circular diariamente em offshores ou coisas do género. É evidente que se um estado puser problemas a um banco, ele està-se nas tintas, aprovisiona-se num banco estrangeiro, outro banco multinacional, num fundo offshore, portanto deixa de ter problemas. Agora, o dinheiro anda à solta, està fora do controlo pûblico. As transacções não-contabilizadas são um dos problemas mais graves, pois para controlar a economia, é preciso controlar o dinheiro. As operações não-contabilizadas efectuam-se geralmente graças a instrumentos financeiros relativamente recentes, os derivados: futuros, “forwards”, opções, “swaps”, etc. Basicamente, são apôlices de seguro. A pessoa segura-se contra futuras flutuações, flutuações das taxas de juro ou flutuações das divisas. Faz-se um contrato em que a pessoa se compromete a pagar dentro de seis meses, sendo o contrato em dôlares. Se o dôlar subir, é uma chatice, porque daí a seis meses é preciso comprar dôlares por mais 10%. Portanto, o que hà a fazer? Faz-se um seguro, um seguro em relação ao valor do dôlar. Alguém assume esse risco, cobra uns 3% ou 4%, o aumento ou a descida do dôlar, - se baixar, ele ganha uma data de dinheiro - o investidor não se mexe: fez um seguro. Os derivados são isto. O que é interessante é que se criou uma economia do risco, pois as divisas e o fluxo de capitais jà não são controlados. Trata-se de uma economia onde se cultiva o risco de modo a criar um sistema paralelo de seguros para cobrir esse risco. A diferença em relação ao seguro automôvel é que esse é totalmente previsível, pois aí funciona a lei das probabilidades, enquanto que os riscos dos mercados financeiros são epifenômenos, raros, não se podem quantificar estatisticamente, portanto são riscos absolutos, imprevisíveis. Estes seguros que cobrem a economia normal criam uma segunda camada mais arriscada ainda, portanto existem seguros para cobrir estes mesmos seguros. Cria-se uma pirâmide de risco e especula-se sobre isso. Cria-se uma economia puramente especulativa, baseada no risco. Uma das características do capitalismo contemporâneo é o facto de a economia incentivar sistematicamente o risco, comercializando-o sistematicamente. Na década de 1980, sob a égide de Thatcher e Reagan, vàrios países adoptam reformas com o objectivo de desregular os mercados financeiros. Autorizando a circulação livre do capital, os estados vão aumentar consideravelmente o poder dos grandes especuladores institucionais: “hedge funds”, bancos comerciais, fundos de pensões, companhias de seguros, etc. Jà numa posição de força, estes agirão como uma nova correia de transmissão da ideologia neoliberal, levando mesmo os estados mais recalcitrantes a acelerar a liberalização da sua economia. Entre os métodos utilizados, os ataques especulativos revelaram-se altamente eficazes... e devastadores. As novas vestes do imperador são tecidas de mecanismos complexos, prôprios para repelir os espíritos mais curiosos. Mas apesar de o colonialismo mudar de rosto, o seu objectivo mantém-se: a concentração do capital. Para jà, a especulação tem vàrios instrumentos e, sem entrar em pormenores técnicos, gostaria de explicar o que se passou na crise asiàtica de 97, que levou ao colapso das divisas de vàrios países, nomeadamente dos chamados “tigres asiàticos”, com uma economia saudàvel. Houve diversos factores nessa crise, mas um dos elementos fundamentais foi a desregulação prévia do mercado de divisas. Nalguns casos, esta desregulação foi imposta ou até recomendada pelo FMI. Os especuladores apropriaram-se das reservas dos bancos centrais pelo seguinte mecanismo: especularam contra as divisas nacionais através do chamado “short selling” [vendas curtas]. O “short selling” consiste em especular sobre a queda de um valor mobiliàrio e não sobre a subida, tal como costuma acontecer. Se um valor mobiliàrio for alvo de um “short selling” maciço, isso levarà a um colapso da procura e, consequentemente, do preço. Pode falar-se de ataque especulativo, pois apostando maciçamente na queda de um valor, são os prôprios especuladores a provocar essa queda. Digamos que eu quero fazer “short selling” do won coreano. Começo a vender quantidades enormes de wons coreanos, associados a uma data futura, com contratos de três ou seis meses, ou seja, ao terminar o contrato, terei de entregar grandes quantidades de wons coreanos ou de bahts tailandeses. Mas não os possuo. Posso vender a quantidade que quiser. Vendo biliões de dôlares de wons coreanos. E quem é que os compra? O banco central da Coreia, que tem acordos com o FMI para estabilizar a sua moeda. Mas, tecnicamente, aquilo que se passou foi que, com a descida da moeda coreana, alguns meses mais tarde, os contratos de “short selling” venceram e aí hà uma apropriação das reservas deste banco central, pois a moeda nacional jà não vale nada e basta aos especuladores voltar a comprar wons no mercado “spot” [à vista], e serem reembolsados segundo os seus contratos. O banco central vai comprar a sua prôpria moeda, o que não é muito rentàvel, e, em troca, são-lhe confiscadas as reservas, que vão parar ao bolso dos grandes bancos ocidentais. O mecanismo é este. As reservas foram apropriadas, portanto a Coreia tem de pedir ao FMI: “Não conseguimos funcionar sem reservas.” “Temos de reembolsar.” Mas esse dinheiro ainda nem foi encaminhado para os credores. “Temos de reembolsar os credores”, que são os especuladores. O que se passa? Quando o FMI atribui um empréstimo de 56 biliões de dôlares, existe a participação de vàrios países, aliàs 24, pois isso requer somas colossais. É o tesouro americano e canadiano, os principais governos ocidentais. Mas para que o tesouro americano ou canadiano ou doutro país ocidental faça um empréstimo na ordem dos 56 biliões, terão de aumentar o seu patamar de dívida, portanto terão de começar a vender, a negociar a dívida na bolsa, portanto estamos perante o mercado da dívida, e quem controla o mercado da dívida soberana dos países ocidentais? Os bancos que especularam. Hà aqui um ciclo vicioso. Ataca-se a Coreia, salva-se, confisca-se-lhe as reservas, empresta-se-lhe dinheiro dos fundos pûblicos dos governos ocidentais e, para aumentar o endividamento dos países ocidentais, é preciso o aval dos bancos privados, os “underwriters” [subscritores] da dívida desses países, portanto todos se endividam, excepto os especuladores, bem entendido, que são os credores da Coreia e dos governos ocidentais que socorreram a Coreia, através do intermédio do programa do FMI. Então, o que se passa? A economia coreana està vaticinada à bancarrota. Os activos bancàrios e a indûstria de alta tecnologia são vendidos ao desbarato e aquilo que se vai passar é a transferência de toda a riqueza industrial para investidores americanos, de tal modo que os activos são comprados por uma quantia irrisôria. Posso dar o exemplo de um dos principais bancos coreanos, que foi reestruturado com base nas recomendações do FMI apôs esta operação, pois foram impostas certas condições. Este banco foi vendido por 450 milhões de dôlares, o Korea First Bank, a investidores da Califôrnia e do Texas, mas uma das condições de venda foi que o governo coreano financiasse as dívidas incobràveis através de subsídios que valiam 35 vezes mais do que o valor da compra, ou seja, de mais de quinze biliões de dôlares. Esses investidores americanos chegaram à Coreia e, de repente, obtiveram o controlo do aparelho financeiro local e dos bancos comerciais, ao mesmo tempo que possuem as dívidas das grandes empresas, tal como a Hyundai ou a Daewoo, e estão numa posição em que podem ditar o desmantelamento destas sociedades. Sabemos entretanto que a Daewoo foi vendida à GM, ou pelo menos uma parte, e que outras firmas coreanas vão ser vendidas. Através de um mecanismo que tinha por base a manipulação dos mercados financeiros toma-se posse de uma economia no seu todo. “As empresas coreanas vêem o crédito restringido pela crise bancària.” “O desemprego atinge um milhão de pessoas.” Os “pedintes do FMI” Teve início a mais grave crise social enfrentada pela Coreia do Sul desde a guerra: no princípio de Março, o nûmero de desempregados atingiu um milhão. A campanha de liberalização da economia levada a cabo pelos mercados financeiros não teria tido o mesmo sucesso sem a preciosa colaboração das instituições de Bretton Woods, que também constituíram importantes correias de transmissão da ideologia neoliberal: o Fundo Monetàrio Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio (OMC, antigo GATT). O FMI e o Banco Mundial foram criados em 1944 para garantir a estabilidade das taxas de câmbio e apoiar a reconstrução dos países destruídos pela Segunda Guerra. No entanto, com o passar do tempo, os EUA e a Europa alteraram consideravelmente o mandato das duas instituições sediadas em Washington. Com efeito, pouco apôs a decisão unilateral dos EUA, em 1971 , de pôr fim ao Sistema Monetàrio Internacional, o FMI e o BM viram-se investidos de uma nova missão: impor aos países em desenvolvimento a liberalização da sua economia, fixando como “condicionalidade” à concessão de qualquer empréstimo a adopção de uma série de medidas neoliberais. Houve quem descrevesse este conjunto de reformas econômicas como uma “terapia de choque”, e, ironicamente, também é designado por “consenso de Washington”. 9. neoliberalismo ou neocolonialismo? 9. neoliberalismo ou neocolonialismo? a capacidade de imposição das instituições de Bretton Woods ou o Consenso de Washington Washington, sede do Banco Mundial e do FMI, começa a ditar ao resto do mundo, sobretudo aos países mais pobres, quase em bancarrota, como aplicar a boa ciência econômica. São as chamadas “medidas de ajustamento estrutural” ou plano de ajustamento estrutural, ditado pelo FMI e secundado por empréstimos do Banco Mundial aos diferentes países envolvidos. Guiné Equatorial, 2006 Houve dezenas e dezenas de países que mergulharam no caos devido às medidas do FMI e do Banco Mundial. Muitas destas medidas, e são demasiadas para enumerar, desde as fundamentais às de curto prazo, mas essas medidas podem resumir-se a três ou quatro mais importantes. primeira medida: redução das despesas do estado A primeira medida imposta aos países em vias de não conseguirem pagar, ou seja, na miséria absoluta, foi a redução do défice governamental, isto é, a redução das despesas do estado. Reduzir o estado, reduzir as despesas do estado. segunda medida: privatizações Privatizações. Quem é que vai comprar? Operadores locais, não hà. Se houvesse dinheiro local para comprar companhias petrolíferas, de fosfatos ou de ferro, o país não estaria na miséria. Agrava-se de tal modo o estado destas economias do Terceiro Mundo, ou dos países mais desfavorecidos, que eles vendem os seus ûltimos interesses econômicos, nacionais, a interesses estrangeiros. As multinacionais põem-se a comprar, para além de deslocalizarem, pois nesses países, como é evidente, a mão-de-obra é barata e os preços são baixos. Para as multinacionais, é mais barato produzir nesses países do que no seu país de origem e, ainda por cima, conseguem comprar por uma ninharia instalações e unidades de produção, como de tratamento de açûcar ou de pré-refinação de petrôleo e gàs ou de liquefacção de gàs ou transporte de minério, por uma ninharia. E que custou anos e anos à economia nacional desses países. terceira medida: desvalorização da moeda A desvalorização da moeda local significa que, de repente, para os países que jà são pobres, tudo o que é importado se torna subitamente mais caro do que a desvalorização. Quando o franco CFA foi desvalorizado repentinamente para metade, no início dos anos 90, se não me falha a memôria, de repente, mais de um terço de Àfrica que tinha o franco CFA como moeda fica com metade do poder de compra, dum dia para o outro. Um ordenado que permitia um certo nível de vida jà sô permite metade desse nível de vida. Estamos perante uma inflação. imediata de 100%. Juntando a isso o facto de os produtos semi-manufacturados, os produtos manufacturados e tudo o que Àfrica importa, no exemplo de Àfrica, e refiro-me à Àfrica da região CFA, com a desvalorização para metade do franco CFA, esses produtos passam a custar o dobro. Aliando isso aos efeitos da desvalorização local da moeda, deparamos com produtos cinco ou seis vezes mais caros. E isto literalmente de um dia para o outro. Com o tempo, vê-se o que acontece, pois os produtos locais feitos a partir de produtos importados ou que precisam de colas, diluentes, pintura, qualquer que seja o produto importado, com o tempo, dois, três ou seis meses mais tarde, fica duas, três ou quatro vezes mais caro. quarta medida: reorientação da economia nacional para a exportação Se medirmos os efeitos de obrigar os países mais pobres, em que houve intervenção do FMI e do Banco Mundial, a aumentar a produção dos produtos exportàveis, vemos que os fazemos concorrer entre si em relação aos mesmos produtos. Os países produtores de café vão produzir de repente muito mais café. Com o cacau e o petrôleo passa-se o mesmo. Em relação à bauxite não sei, mas também não interessa. O açûcar, o trigo, todos os produtos de base vêem os preços baixar em flecha, como é evidente, devido à superprodução. Além de os preços baixarem e da concorrência entre os países, junta-se a isso o efeito da inflação, através da desvalorização da moeda e do aumento automàtico dos preços de tudo o que é importado. Assiste-se a uma espécie de inversão dos interesses desses países, apesar de afirmarmos agir no seu interesse. Tudo aquilo que importam lhes sai mais caro e aquilo que exportam traz-lhes cada vez menos rendimentos, portanto entram numa espiral de sobre-endividamento que faz com que neste momento, em 2002, o pagamento da dívida da maioria dos países mais pobres, e refiro-me ao Bangladesh e ao Ruanda, ao Burundi e ao Togo, países como esses que estão jà no mínimo dos mínimos, sô o pagamento da dívida pode atingir 600 vezes as receitas das exportações. quinta medida: os preços verdadeiros O preço verdadeiro obtém-se assim: nada de subsídios para os produtos de primeira necessidade, portanto nada de subsídios à habitação, à saûde, ao ôleo, ao arroz, aos transportes... Não se subsidia mais nada e passa a vigorar o preço verdadeiro. Que é que isso quer dizer? Em termos de dôlares, todos os preços ficam iguais no mundo inteiro. Ou seja, quem viaja com dôlares, tal como eu, pois sou canadiano, os preços são quase iguais em toda a parte do mundo. Quer se và a Cotonou, no Benim, um dos países mais pobres do mundo, ou a Chicago, Nova lorque ou Paris, o quarto no Holiday Inn ou no Sheraton, a refeição no Holiday Inn custa o mesmo em dôlares. Sô que em Cotonou, no Benim, um dos países mais pobres do mundo, uma noite no Sheraton, onde costumo ficar quando là vou, custa seis meses de ordenado a um funcionàrio pûblico do Benim. Uma refeição neste hotel equivale a uma semana de trabalho de um funcionàrio menor. sexta medida: liberalização do investimento e salàrios verdadeiros Apôs os preços verdadeiros, os salàrios verdadeiros. lsso consiste, lapidarmente, em baixar todos os salàrios para os mais baixos de cada sector de parceria com o movimento de “liberalização” do comércio. Passo a explicar-me. Com o NAFTA, México, EUA e Canadà passam a ser uma zona de comércio livre e os salàrios deslizam do nível americano para o mexicano. É o que acontece ao pôr em concorrência trabalhadores mexicanos e norte-americanos e canadianos. Deslocalizando para o México, finge-se que o NAFTA criou empregos no México. Em termos concretos, seis ou sete anos depois do NAFTA, os salàrios na zona de Leone e do norte do México, onde se instalaram as multinacionais americanas, que encerraram nos EUA, e é isso que é preciso compreender... É que deixou de haver empregos com salàrios elevados, comparativamente com o México, para “criar” empregos no México, mas muitíssimo mais mal pagos. Nos ûltimos cinco anos, o nível dos salàrios nesta região, a mais activa e rica do México, para onde as multinacionais americanas se deslocalizaram, baixou, em termos de poder de compra, 23%. Ou seja, hà cinco anos um funcionàrio da GM no México conseguia sustentar uma família com um filho ou dois. Hoje em dia, esse mesmo operàrio sô consegue sustentar-se a si prôprio. Na véspera da cimeira que vai ter lugar no norte do México, està a construir-se em Monterey um muro para esconder os bairros da lata. Um muro de três metros de altura e quilômetros de comprimento, para que os participantes na cimeira não vejam a pobreza que existe. A paridade salarial é precisamente isto. É fazer os salàrios descer até ao nível mais baixo de cada sector e como os sectores mais modernos, a informàtica e electrônica, estão cada vez mais disponíveis no Terceiro Mundo, temos companhias aéreas, penso que a Swissair fazia isso, siderurgias e outras companhias, a mandar fazer a contabilidade e a informàtica em Bombaim, na Índia. Là, um contabilista que faz o mesmo trabalho que na Suíça ou no Canadà custa cem vezes menos. Um informàtico que faz os mesmos programas de computador para aviões custa duzentas vezes menos. E por aí fora. lsto é que é a “paridade salarial”. Mas o que me aborrece é que estas medidas em conjunto - desvalorização, exportação, pagamento da dívida, privatizações e redução do défice de estado, que é obrigado a despedir, logo a criar desempregados - estas medidas em conjunto com a paridade de preços e salàrios provocam a situação actual em que os países ricos estão infinitamente mais ricos e os países pobres estão infinitamente mais pobres. Fico alarmado quando vejo o Banco Mundial e o FMI tentarem repetir na Argentina precisamente aquilo que dizimou a economia argentina. É como se não se tivesse aprendido nada com a histôria. Porque é que não se aprende? Existe uma explicação. Porque hà interesse em que esta ideologia que explica o mundo sobreviva enquanto se puder explorar o mundo desta maneira. No FMI, o direito de voto exerce-se no seio do directôrio executivo. Trata-se de um direito de voto baseado na participação financeira ou na contribuição financeira de cada um dos estados. Na realidade, são os accionistas do FMI e o mesmo se passa com o Banco Mundial. Não é como nas Nações Unidas. Os principais accionistas do FMI são os EUA, como é evidente, Alemanha, Japão, Grã-Bretanha, França, etc., mas isso é apenas um aspecto, pois sob essa representação política no seio de uma organização intergovernamental hà outras questões. Os bastidores, o tràfico de influências entre Wall Street e Washington, as ligações entre o FMI e os “think tanks”, a Heritage Foundation, o Brookings Institute, o tesouro americano, que também està implicado, a Reserva Federal americana, aquilo a que se chama o “Consenso de Washington”. É um jogo de poder. Em 2005, Paul Wolfowitz, um dos ideôlogos mais radicais da política imperialista e o braço bélico do Presidente Bush, passa directamente do Ministério da Defesa americano para a direcção do Banco Mundial. Esta nomeação, que põe fim a toda e qualquer ambiguidade acerca dos verdadeiros objectivos do Banco Mundial, revela o verdadeiro rosto das instituições de Bretton Woods. Conferência de Bretton Woods, Hotel Mount Washington, 1944 Apôs a guerra, deu-se naturalmente a criação do FMI e do Banco Mundial e, no espírito de John M. Keynes, o arquitecto das duas instituições, fazia falta uma terceira organização, que seria a organização internacional do comércio. Não chegou a existir, os americanos não quiseram, mas em sua substituição criou-se o GATT, General Agreement on Tariffs and Trade, criado em 1947 e que deveria tentar fazer baixar os direitos alfandegàrios dos produtos industriais. O GATT até funcionou bem, pois durante os seus cinquenta anos de existência houve reduções importantes dos direitos, que passaram dos 40%-50% a 4%-5%. Mas isso apenas se aplicava aos bens industriais, aos produtos, portanto sentiu-se necessidade, sobretudo por parte das companhias financeiras transnacionais, de criar uma organização que abarcasse outros domínios e não simplesmente os produtos industriais. Foi por isso que na Ronda do Uruguai, o ûltimo ciclo de negociações do GATT, se decidiu criar a Organização Mundial do Comércio, que se torna realidade a 1 de Janeiro de 1995 e que abarca uma multiplicidade de acordos. Não sô o GATT, que ainda vigora, mas o acordo sobre a agricultura, sobre a propriedade intelectual, o TRlPPS, o acordo geral sobre o comércio e serviços, uma coisa enorme que abarca 11 grandes domínios e 160 subdomínios, cobrindo todas as outras actividades humanas, incluindo a educação, a saûde, a cultura e o ambiente. E hà ainda outros acordos técnicos, que até parecem ser técnicos, mas são extremamente políticos, o acordo sobre as barreiras técnicas ao comércio e sobre as medidas sanitàrias e fitossanitàrias, que são acordos sobre as normas que os diferentes membros, ou seja, os estados, podem activar e que declaram que certas normas são, na verdade, barreiras técnicas ao comércio. Talvez o menos conhecido, mas mais importante de todos, seja o Entendimento sobre a Resolução de Litígios, o braço jurídico poderosíssimo da OMC, que lhe permite resolver conflitos entre membros e fazer jurisprudência. Então, quem são os juízes? Não se sabe bem, pois hà especialistas que são escolhidos por listas e os países podem recomendar quem quiserem para as listas. Geralmente são cidadãos, advogados, ou antigos gestores, mas não se sabe quem são. Reûnem em segredo, geralmente a três. Tomam decisões rapidamente. Existe a possibilidade de recorrer da decisão, mas as condições são as mesmas. Constitui-se um novo painel, que decide em segredo. O que é importante compreender acerca do ERL, o Entendimento sobre a Resolução de Litígios, é que é simultaneamente é que é simultaneamente legislador, jurista e executivo, pois delibera e estabelece uma jurisprudência. Coloca-se acima de todas as leis promulgadas pelas legislaturas promulgadas pelas legislaturas dos diversos países, mas também acima do direito internacional, penosamente estabelecido ao longo de cinquenta anos. Os direitos do homem, as convenções multilaterais sobre o ambiente, as convenções da Organização Internacional do Trabalho, esquece-se tudo isso e tomam-se decisões na OMC. “O comércio tem primazia sobre tudo.” “Não queremos ouvir falar em convenções sobre o ambiente.” E é executivo porque tem o poder de impor sanções. E quando um país não concorda com o veredicto, dizem: “Muito bem, não adeqûe a legislação às nossas resoluções,” “mas tem de pagar, e paga todos os anos.” “Paga através dos direitos alfandegàrios,” “a decidir pelo seu adversàrio neste litígio”. Portanto, quando os EUA decidem impor direitos à Europa, no caso de França sobre o “foie gras”, a mostarda e o Roquefort, estão no seu direito. lsso sai caro, e poucos países podem dar-se ao luxo dessa extorsão anual. Na OMC, existem diferentes negociações em simultâneo. Um país que não tenha um embaixador em Genebra ou que partilhe o embaixador com outros países, que é o caso dos africanos e de muitos micro-estados, vê-se na impossibilidade de seguir as negociações. O Sul não sabe o que se passa em todos os domínios. E di-lo abertamente. Houve um embaixador do Sul que disse: “A OMC é como um cinema com vàrias salas.” “É preciso escolher o filme, porque não podemos vê-los todos.” Portanto, escolhem o que lhes parece mais importante para o seu país e quanto ao resto... Portanto, quem é que toma as decisões? Diz-se que é por consenso. Na OMC, nunca houve nenhuma votação. E o embaixador dos EUA disse Eque o voto seria um mau precedente, portanto jà estamos a ver o que pensa da democracia. Mas na realidade é o Quad, os quatro países, Canadà, Estados Unidos, União Europeia e Japão, que se encontram amiûde, com grande nûmero de funcionàrios na OMC, e que chegam, eles sim, a um consenso, para depois declararem à Assembleia Geral: “Estão de acordo, não é verdade?” Para os países do Sul, é muito difícil dizer que não. É preciso ter muita coragem e muitas certezas, pois existem meios de pressão sobre eles, e não vale a pena iludirmo-nos. Quem està dependente do FMI ou tem problemas com os EUA, sabe que é melhor não pisar muito o risco. Na verdade, os mercados financeiros e as instituições de Bretton Woods tornaram-se os instrumentos privilegiados da conquista neoliberal. Mas continua a haver países que se recusam obstinadamente a entrar nesta marcha forçada. É nessas alturas que o colonialismo deixa as suas vestes novas e se apresenta com o velho fardamento de combate. Desde o desmembramento da Jugoslàvia à guerra no Afeganistão, passando pelo Darfur, os conflitos apôs a Guerra Fria articulam-se à volta de questões muito diferentes das que nos apresenta a propaganda ocidental, sob a capa de um novo “humanismo militar”. O controlo dos recursos, mas também do fluxo financeiro e dos espaços geoestratégicos, tal como os ditames do FMI, do Banco Mundial ou da OMC, garantem o domínio das grandes empresas e dos grandes detentores de capital sobre todo o planeta. Além disso, os governos coloniais instalados pelos conquistadores apressaram-se a adoptar os dogmas da ideologia neoliberal. E assim se termina o cerco. 10. neoliberalismo ou neocolonialismo? 10. neoliberalismo ou neocolonialismo? A capacidade de imposição do humanismo militar ou “a guerra é a paz” Os Acordos de Dayton foram assinados em 1995 numa base militar americana. Se consultarmos o texto desses acordos, vemos que a Constituição da Bôsnia-Herzegovina aparece em apêndice aos Acordos. Foi redigida por consultores e advogados americanos, que se reuniram e redigiram um documento fundamental sem ter havido uma assembleia constituinte dos cidadãos da Bôsnia-Herzegovina. Nessa constituição redigida pelos EUA lê-se o seguinte: “Artigo x: o banco central da Bôsnia-Herzegovina não poderà funcionar como banco central, deverà funcionar como comité monetàrio, ‘currency board’”. Ou seja, um banco colonial sem possibilidade de emissão monetària, ou seja, totalmente nas mãos dos seus credores externos. É o modelo que existe actualmente na Argentina, por exemplo. Mais ainda, na constituição da Bôsnia-Herzegovina, redigida em Dayton, afirma-se que o FMI nomearà o presidente do banco central da Bôsnia-Herzegovina e que este não poderà ser um cidadão da Bôsnia-Herzegovina nem de nenhum país vizinho. Por outras palavras, vemos que esta constituição, que é totalmente fabricada e sem qualquer intervenção dos cidadãos da Bôsnia-Herzegovina, instala um governo colonial. Chama-se-lhe outra coisa, “comunidade internacional”, mas vemos que todas as estruturas administrativas ficam sob o domínio estrangeiro. Os orçamentos estão na mão de estrangeiros e a política monetària é inexistente, mas os Acordos de Dayton são apresentados pela dita comunidade internacional como sendo a resposta aos problemas de diferentes países. Também queríamos ter instalado o mesmo modelo de gestão, de gestão colonial, na Macedônia ou na Jugoslàvia. Aliàs, até se fala em mosaico, num mosaico de protectorados. Humanismo militar é uma expressão simpàtica, utilizada para disfarçar coacção, conquista e opressão. A ûnica coisa nova é a expressão em si. Se recuarmos na histôria, a histôria da conquista, do imperialismo, da opressão e da violência é quase sempre apresentada em termos humanistas. Os franceses estavam a levar a cabo uma missão civilizadora, apesar de o Ministro da Guerra afirmar: “Temos de exterminar todos os argelinos.” Os britânicos levaram abnegadamente a civilização aos bàrbaros na Índia, ao conquistarem-na e criarem o maior império mundial de narcotràfico, tentando infiltrar-se no mercado chinês, ao mesmo tempo que falavam em comércio livre. Nos EUA, chama-se “excepcionalismo” americano. Somos tão nobres, ninguém consegue ser como nôs. O problema é que todos os sistemas de poder disseram o mesmo. Quando os japoneses conquistaram a Manchûria, no norte da China, os documentos de que dispomos, pois eles foram conquistados, transbordam de retôrica humanista acerca do modo como vão criar um paraíso na terra e como o Japão é altruísta, sô actua para bem dos outros. Aliàs, hà um artigo interessante publicado pelo “Globe and Mail” hà umas semanas, escrito por um imigrante russo, um soldado russo que combateu no Afeganistão e agora vive no Canadà. E ele comparava o modo como a invasão russa do Afeganistão tinha sido descrita com a descrição da invasão americana do Iraque e do Afeganistão. Falava das tropas canadianas no Afeganistão. Quase igual. Ele tinha sido soldado e dizia que todos acreditavam naquilo. “Estamos a tentar ajudar o povo do Afeganistão. Somos impedidos pelos terroristas apoiados pela CIA. Estamos a sacrificar-nos, a levar-lhes ajuda médica, a conceder direitos às mulheres. Tudo por causa dos tarados dos terroristas islâmicos.” Por acaso, muita coisa até era verdade. Mas é quase igual à descrição que o Canadà faz da sua missão no Afeganistão, no Iraque e por aí fora. São questões culturais quase universais. Agora, chamam-lhe humanismo militar. Supostamente, o neoliberalismo é economia pura, mas, mal se olha com atenção, é sô um jogo de poder das multinacionais e de alguns estados que estão a defender os seus interesses. Digamos que é uma espécie de neocolonialismo, mas noutros termos. E isto tem acontecido ao longo da histôria. Se tivéssemos registos do tempo de Àtila, provavelmente transbordariam desta nobre retôrica. Tradução lsabel Fajardo Ripped & srt: Tokadime