Eu sempre fui considerada
uma menina feia,
pelo menos por mim, ou pela maioria
das pessoas à minha volta.
Meus pais, no caso, eram os únicos
que realmente apreciavam
esta beleza singular.
(Risos)
Apesar de sempre ter tido
uma autoestima muito baixa,
como toda criança negra, com essa idade,
existia um grupo específico de pessoas
que me tratava de uma forma diferente.
Com essa idade, existia um grupo
de pessoas que, de fato,
sabia que eu era
uma menina não muito bonita,
meio desajeitada, desengonçada...
mas que também sabiam
que, de alguma forma,
eu me tornaria uma mulher
muito bonita quando eu crescesse.
Esse grupo de pessoas era formado
majoritariamente por homens;
homens mais velhos.
Geralmente primos de segundo grau,
amigos de primos de segundo grau,
ou, então, desconhecidos.
Que quando estavam na rua com meu pai,
atrás de um balcão, devolvendo o dinheiro
do troco do almoço, falavam pra ele:
"Nossa, a sua filha é linda, vai dar
muito trabalho quando crescer...
vai ter um monte de gavião".
E ria.
Oito ou nove anos, eu tinha.
Eu ficava me perguntando...
o que faz e o que fez com que homens
como aqueles, atrás do balcão
e com que tantos outros homens enxergassem
em uma criança de oito, nove anos,
alguma possibilidade de beleza.
Como eles entendiam que,
de alguma forma, eu daria "trabalho".
Como eles entendiam que, de alguma forma,
eu teria pretendentes.
Como eles entendiam que uma menina
que não se esforçava em nada
pra ser sensual, pra ser bonita,
que não sabia sobre maquiagem,
sobre decote, que era só uma criança,
como eles sabiam que essa
criança feia daria trabalho?
Essa foi uma das perguntas que eu
sempre fiz ao longo da minha vida.
Por que eu me vejo feia,
por que as pessoas me veem feia,
mas por que existe uma parcela masculina
que tem certeza que eu serei bonita?
De onde sai isso?
Eu comecei a me perguntar
e eu passei a deixar de me questionar,
porque eu me sentia feia,
então era melhor alguém falar:
"Nátaly, você é feia, mas você
pode se tornar bonita",
do que alguém falar: "Nátaly,
você vai ser sempre feia".
Foi com uns 11, 12 anos
que eu entendi o que eu era.
Eu entendi que eu era mulata.
Eu entendi que as pessoas me tratavam
e me viam como a mulata.
E o que era a mulata naquela época?
Naquela época, pra mim, mulata era
uma categoria menos pior de negra.
As pessoas falavam: "Nátaly,
você é feia pra caramba,
nem alisando esse seu
cabelo ruim, dá jeito.
Sorte sua que você não é tão preta".
Eu erguia minhas mãos pro céu e falava:
"Sorte minha que eu não sou tão preta.
Deus não me fez branca,
me entristeço por isso,
mas obrigada por ter me feito mulata.
É um sofrimento a menos".
Com meus 13, 14, 15 anos, por aí,
eu comecei a entender o que a mídia,
o que a sociedade dizia
sobre o que era a mulata.
Eu comecei a entender
que ser mulata não era tão ruim.
Que ser mulata era ser da cor do pecado,
que ser mulata era ter
curvas envolventes, sensuais,
que a mulata me colocava na poesia,
que a mulata colocava
o meu corpo na bossa-nova.
Eu não era "a mulata",
mas me tornaria a mulata.
E era a expectativa
de que meu corpo se desenvolvesse,
que as curvas aparecessem
e eu pudesse, enfim,
ser a mulher que sambava,
fazia com que eu recebesse elogios.
Esses eram os únicos.
Eu aceitei...
me chamavam de mulata,
sabe: mulata, de "mula"...
que é um híbrido...
de cavalo e jumenta.
Foi um termo que foi
cunhado no passado colonial
pra classificar os filhos feitos
dos estupros cometidos
pelos donos das casas grandes,
nas negras escravizadas.
E que, hoje em dia, é um termo racista
que caracteriza mulheres negras
de pele clara, magras, porém curvilíneas
e que, com certeza, por uma determinação
biológica, sabem sambar,
afinal, está no sangue saber sambar.
Com 16, 17 anos, eu fiquei
esperando a mulata.
"Ah, cadê a mulata? Falaram a vida
inteira que a mulata ia chegar,
tô aqui esperando essa mulata..."
(Risos)
"Tô aqui no ensino médio
querendo perder o BV..."
As pessoas precisam achar
que eu sou bonita de alguma forma.
E o único elogio que ouvi minha
vida inteira é que eu só seria bonita
no dia em que meu corpo se desenvolvesse
e eu efetivasse a mulata,
então cadê a mulata?
Eu esperei a mulata,
e aí a mulata não foi aparecendo.
A mulata não vinha, eu ficava preocupada,
minhas amigas peitudas, bundudas,
e eu ainda reta, eu falava:
"Cadê essa bosta dessa mulata
que me prometeram a vida inteira?"
(Risos)
Cadê a minha autoestima
que estaria com ela?
Cadê a única expectativa de amor-próprio
que eu coloquei dentro
de uma bunda e de um peito?
Que me prometeram
durante toda a minha vida?
"Ela vai ser muito bonita,
ela vai sambar...
ela vai rebolar,
ela vai ter um corpo de dar inveja,
porque ela é uma mulata,
e mulata é menos pior".
Eu esperei a mulata,
a mulata não apareceu,
e aqui está eu hoje.
(Risos)
(Membro da plateia): Você é linda!
(Aplausos) (Vivas)
Meu corpo parou
de se desenvolver aos 13 anos.
Com 13 anos eu não cresci mais,
não me desenvolvi fisicamente,
então com 13 anos
eu comecei a entrar em pânico.
Com 15 anos, eu estava desesperada.
E comecei a perceber que, de fato,
a mulata não chegaria,
e que eu precisaria compreender e achar
outras formas de lidar com meu corpo.
Com 17, 18 anos passei
a odiar o meu corpo,
porque a mulata não veio.
Então, não tinha nada que me salvasse,
não tinha expectativas de melhoras.
Eu odiava o meu corpo muito.
Eu odiava quem eu era
de uma forma muito profunda,
a ponto de me bater em noites de crise,
quando eu estava mal.
A ponto de esmurrar os meus próprios
seios porque eles não cresceram
o tanto que as pessoas diziam
que deveriam ter crescido.
Com 17, 18 anos, passei
por um período de odiar meu corpo;
odiar o meu corpo magro.
Este corpo aqui, um corpo magro.
Como eu, uma adolescente, tão dentro
do meu tempo, tão fruto da minha época,
que lia revistas femininas,
que via TV, que via novela,
que sabia que o ideal
era o corpo magro; como consegui
odiar o meu corpo magro?
Como eu consegui odiar
um corpo que era padronizado?
Como eu consegui odiar
um corpo que era valorizado?
Como eu consegui odiar
um corpo que em todos os espaços
diziam que era o melhor?
Eu odiava o meu corpo magro.
E por quê?
Seria porque...
os mecanismos do racismo
são muito mais complexos
e muito mais profundos
do que qualquer padrão de beleza?
Será que odiei o meu corpo magro
porque, de alguma forma,
o fato de ter inferiorizado pessoas
por conta de seus traços
e de suas origens culturais,
ao longo da história, valeu mais
do que padrões de beleza
que se transformam ao longo
do tempo; será que é isso?
Será que racismo, de fato,
é uma coisa séria?
Será que racismo, de fato,
é estrutural, não é conjuntura?
Será que racismo está na sociedade
muito mais profundamente
do que a gente compreende?
Será que a senzala ainda não acabou,
será que a senzala ainda está aqui?
Será que é senzala...
quando a gente acha um menino negro
na rua e se assusta com ele?
Será que é senzala quando menosprezam
a pessoa que eu sou?
Será que é senzala quando vocês
se surpreendem ao perceber
que nós, mulheres negras,
somos inteligentes?
Será que é senzala
quando vocês se surpreendem
por eu estar aqui falando pra vocês?
Será que é senzala quando me surpreendo
por estar aqui falando pra vocês?
Será que a senzala não está em mim,
será que não está em vocês?
Será que a gente superou?
Existem mulheres em que a mulata chega.
E quando a mulata chega, o que acontece?
Quando a bunda chega,
quando o peito chega,
o que acontece com essas mulheres?
Elas pedem pra nunca ter nascido,
porque elas não suportam
a forma como são tratadas,
porque elas não suportam a forma
como são objetificadas o tempo inteiro,
em todas suas relações,
em todos seus espaços.
Quando a mulata chega, é insuportável,
porque elas não conseguem andar na rua,
porque elas não conseguem
conversar com pessoas
sem sentir o desconforto dos olhares,
das piadas direcionadas aos seus corpos.
Quando a mulata chega,
essas mulheres pedem a Deus:
"Por que você me fez mulata?"
E eu pedia pra Deus:
"Por que não me faz mulata?"
Então, qual é a diferença?
A diferença é que racismo é estrutura.
E ele vai fazer com que você se odeie.
Com que você odeie o seu corpo,
a sua vida, as suas origens,
independente de quem
você seja, basta ser negro.
Você pode ser magro, você pode ser gordo,
você pode ser rico, você pode ser pobre,
você pode ser intelectual,
você pode ser analfabeto.
A senzala está pra todo mundo.
De maneira, talvez, mais intensa
pra uns do que pra outros,
mas a senzala está aqui.
A senzala está quando odeio meu corpo,
quando odeio a minha realidade,
quando odeio quem eu sou,
pra corresponder
a um estereótipo de beleza
dessa sociedade escravocrata atual.
Se o racismo não mata na entrada,
ele faz com que você
queira morrer na saída.
Se o racismo...
destrói de maneira clara e descarada,
a negra de pele retinta, preta, escura,
o racismo, fala meu nome como forma
de amor: "mulata, bonita, sensual...",
e depois me esfaqueia pelas costas.
Parafraseando Augusto dos Anjos,
"o racismo escarra na minha
boca enquanto me beija".
A gente não precisa de senhor de engenho,
a gente não precisa de chibatada brutal
nos nossos corpos, porque a senzala
ainda é aqui nas nossas mentes,
de maneira virtual, não corpórea.
Enquanto a gente ainda tiver pessoas
negras que se sentem subjugadas
por serem quem são;
enquanto nós tivermos pessoas negras
que não se sentem pertencentes,
que não se sentem valorosas
por serem que são;
enquanto eu ainda odiar um corpo
que nunca me fez nada,
porque a sociedade diz que devo odiar;
enquanto eu achar
que a única coisa que me valoriza
é um ideal racista, imposto sobre mim,
quando meu corpo ainda
nem havia se desenvolvido;
enquanto isso acontecer,
a senzala ainda é aqui.
A senzala ainda é agora.
E a chibata, mesmo
que de maneira muito silenciosa,
continua açoitando as nossas mentes.
Obrigada.
(Aplausos) (Vivas)